quinta-feira, 26 de julho de 2012

AVIEIROS” ESTÃO DE VOLTA, MAS AS “MACANITAS" NÂO
      Já se passaram muitos anos que as “Macanitas”, essas jovens raparigas de rosto tostado mas bonito, brejeiras, de ar alegre e jovial, desapareceram da região de Barcarena.
  A grande maioria desembarcava na estação do Cacém, carregada de caixas, sacos, esperança a rodos e sonhos em quantidade no bornal, já que em suas terras pouco se ganhava, onde viam pais, avós e conterrâneos agarrados à frieza de seus lares perecendo sem dó nem piedade, à fome, numa miséria intolerável, por isso, os mais novos, antecipando-se a esse anunciado e real holocausto, fugiam, aldeia fora, em busca de nova vida.
   Umas encontravam-na, outras nem tanto, mas a verdade é que os extensos terrenos da região que o grande Marquês de Pombal garantia serem os mais férteis da Europa para o cultivo do trigo, lhes proporcionava uma vida mais agradável e então, por cá arranjavam os seus namoricos, casavam-se e iniciavam uma vida nova, como a mulher do “Vítor das ovelhas”, a Rosa, esposa do “Fonte Santa” e tantas outras que sentiram uma grande felicidade por estas paragens, e felizmente ainda hoje vivas.
       Mulheres bem conhecedoras do que fora a amargura desses terríveis tempos, debruçadas de sol a sol sobre o trigal que ondulava com a força do vento, estendendo-se pela encosta a cima desde o Bico ao casal de Cabanas e onde o frio as enregelava desde os pés aos cabelos.
    Sobreviveram e hoje apenas lamentam os anos se terem passado céleres, mas felizes por terem arranjado a sua família e com ela viverem alegremente, agarradas aos netos, aos filhos nos seus confortáveis lares, completamente remodelados e repletos de condições, o que antigamente não tinham, já que viviam temporariamente em barracões desconformes, frios e com camas improvisadas com toscas tábuas e modestas e desconfortáveis esteiras feitas de juncos entrelaçados.
    Tudo isso, já passou e desse tempo apenas resta a saudade de terem sido jovens, porque o demais, que o diabo o leve para bem longe, contudo é com desgosto que vemos todos esses espaços, onde o pão nascia verde, cheio de esperança e depressa se transformava em douradas espigas que depois de moídas alimentavam as pessoas, desaparecerem da nossa bem transformada região.
    Hoje esse pão é feito de espigas oriundas de países distantes e no seu lugar, constatamos que o cimento inundou desmedidamente toda a região e que saudades isso nos causa, por sabermos que esse mesmo pão que alimenta a sociedade, não ser proveniente do nosso Portugal, mas sim de países que, nada nos diz, pois bem ao invés, deles chega gente sem força para se manter e se arrasta miseravelmente pelas ruas das nossas cidades.
   Envolta nessas bagas, aparece uma mão de obra sem qualidade, de estômagos esfomeados, cabeças transformadas com culturas esquisitas, religiões estranhas e pouco convincentes com a normalidade ocidental que acabam por, precocemente descaracterizar a nossa sociedade, retirando-lhes a humanização, a confiança, devido às suas atitudes insólitas para poderem sobreviver face ao insucesso, matando, assaltando, criando actos de vandalismo e causando os mais desagradáveis incidentes, que até se ajustam com o amargo desse pão que nos alimenta.
    Bem ao invés, o regresso dessas mulheres, conhecidas pelas “macanitas” às nossas terras jamais se verificou, culpa da enorme expansão demográfica dos arrabaldes da grande capital, e os verdes campos foram-se transformando em cimento, betão e mais betão, que nos vai atrofiando, retirando o ar respirável que nos faz viver, o sossego que desejaríamos, a liberdade, a segurança dos nossos filhos, a confiança no nosso semelhante e sobretudo a tranquilidade da vida após o honesto e duro trabalho.
    Isso hoje fugiu para bem longe, as “macanitas” não passam de uma bonita lenda, cantada e difundida pelos saudosistas, pelos historiadores, pelos grupos etno-folclóricos e por todos aqueles que parecem nunca ter concordado verdadeiramente com esse acelerado progresso, que acabou por nos infernizar numa vida sem tréguas, onde o mal sempre nos espreita.
     Ao invés de outras actividades, parecem agora florescer, e renascerem das entranhas dos lodos do Tejo, das velhas e famosas histórias de Alves Redol que tanto se dedicou aos seus “Avieiros”, aos seus “Gaibéus” e a outros povos que migraram no nosso país, como que de ciganos se tratassem e que encheram de vida e história as margens ribeirinhas do famoso rio, vindo de Espanha.
    Afinal diziam os antigos que “de Espanha nem bom vento, nem bom casamento”, mas de lá vêm as águas que dão fama, vida e sustentabilidade a esses modestos, mas dedicados pescadores que invadiram Vila Franca de Xira, Santarém e todas essas margens ribeirinhas, vindos de Vieira, e de tantos outros lugares onde o oceano espraiava na branca areia, só que as suas bravas e gigantescas ondas causavam grandes danos aos humanos que delas dependiam.
     Os “Avieiros” estão de volta às suas origens, parecendo não prescindirem do rio, pese embora todas as modificações da nossa sociedade, mas a verdade é que ele não se alterou, não se expandiu demograficamente, as águas lá estão, os caniços continuam a crescer nas suas margens, os lodos e o pescado continua a abundar e agora mais do que nunca, só os varinos, as canoas e as fragatas foram encalhando nos cais lamacentos das margens opostas à grande capital, nesses esteiros onde a sucata vai envelhecendo e entupindo esses braços do Tejo inertes, tornado lar das mais variadas espécies de peixe miúdo.
    Afinal aquilo que os fazia viver tão sacrificadamente mas de forma modesta, por seus valores serem irrisórios, hoje as lampreias, as enguias, as fataças, os sáveis e tantas outras espécies piscatórias, subiram os seus valores nas bancas dos mercados.
     Voltaram a ter procura e cotação enormes e isso pareceu-lhes ser motivo de um oportuno regresso, mesmo sabedores de que muitos estiveram largas temporadas em países ricos, conseguindo os seus pecúlios, mas o Tejo é sempre novo, como dizia José Viana na sua famosa canção do “Cacilheiro”.
    A Palhota, as Caneiras, localidades ribeirinhas voltaram a ter vida, Vieira de Leiria veio de novo às suas lembranças do passado de onde muitos saíram fugidos da agrura do mar, onde nem sempre podiam pescar, e agora de novo no seu Tejo, parecem felizes, porque ele foi o seu berço, o seu braço direito, o seu ganha pão e este regresso, mais que desejado, vai ser o maior lenitivo para o fim de suas vidas, pois pretendem terminá-las tal qual como os seus progenitores e avós.
     As “macanitas”, essas não regressaram. Deixaram-se ficar nas suas modestas e pacatas aldeias e esta região, onde tantos anos estiveram, aparece hoje transformada em mil e uma cidades.
    Para aqui migraram nos anos trinta e quarenta, só que os lugares e aldeias acabaram por se encher de betão, de gente insensível vinda de todas as partes do mundo, ignorando as tradições do seu povo, os hábitos salutares do passado, dos bailes e festas de rua que davam muita alegria e animação às suas gentes, das searas que jamais brotaram as louras espigas, dos moinhos que apodreceram as suas alvas velas e se deixaram esmoronar com a agrura e o passar do tempo, dos engenhos cerealíferos que enferrujaram à beira rio, dos campos alegres bem repletos de chilreante passarada que desaparecera por completo, bem ao invés do sempre novo e fértil Tejo que não pára de brotar sua grande riqueza.
     Não foi bem isso que motivara os felizes regressados “Avieiros”, mas sim a beleza do seu querido e saudoso Tejo e sobretudo as gratas, apesar de tudo, recordações desses tempos recuados que sempre encheram de satisfação todos aqueles que nele passaram privações, criaram os seus rebentos e passavam longas horas do dia e noite dentro das modestas e desconfortáveis bateiras, mas que a todo o custo conseguiram sobreviver.
     Hoje, vogam nelas recuperadas, puxando redes com as suas já "descalejadas" mãos, em busca apenas de uma forma eficaz de melhor passarem os seus últimos anos de vida, conscientes de que estão a lembrar velhos e difíceis tempos, mas mostrar também aos mais novos, sobretudo os que gritam desolados, atingidos pelo desemprego, de que, o Tejo é sempre novo e continua a fornecer riqueza e saudável sustento a quem assim o desejar, só que as “macanitas”, essas não têm para onde regressar, mesmo que esse fosse o seu ardente e saudoso desejo. Os extensos trigais por aqui existentes, acabaram por secar com o exagero do cimento e a especulação imobiliária.
&&&

quarta-feira, 11 de julho de 2012

MANUEL VAZ E O ANALFABETISMO NA FÁBRICA DA PÓLVORA DE BARCARENA
    Tem-se falado muito pouco do professor Manuel Vaz, patrono da Escola Primária de Barcarena, que de momento foi extinta, por falta de alunos, facto que nos deixa admirados uma vez que a sede da freguesia tem vindo a aumentar o número de habitantes de ano para ano.
    No entanto Manuel Vaz, não foi pelo facto de ter dado o seu nome à Escola Primária de Barcarena, onde durante tantos anos deu aulas, que perdera o seu prestígio, como pessoa, oficial de registo na freguesia de Barcarena e professor.
     Manuel Vaz foi aluno da Casa Pia onde estudou e mais tarde ali ministrou aulas, sendo mesmo considerado um grande mestre casapiano, tendo ainda o mérito de transformar analfabetos em pessoas letradas que acabariam por sentir melhorias em suas vidas, graças à sua profícua e pedagógica acção.
  O professor nos anos quarenta do século passado, deu aulas a uma série de trabalhadores da Fábrica da Pólvora de Barcarena, gente com mais de trinta e quarenta anos de idade, pois nesse tempo a escola não era obrigatória e muitos até nem a frequentavam porque se obrigavam a trabalhar no duro campo desde muito novos, pagos sempre com magros salários, ou então na Fábrica da Pólvora que, para admitir gente para o seu serviço laboral não exigia escolaridade a ninguém depois do início da segunda Guerra Mundial.
   Assim apareceu uma série de empregados que nunca tinha andado na escola, mas no entanto nos seus serviço de polvoristas não passavam da categoria de serventes, porque na realidade para ascenderem a outros postos, como ajudantes ou mesmo operários, obrigavam-se, pelo menos a saber ler e escrever e a grande maioria não estava habilitada, daí que era mesmo impossível ganharem mais dinheiro, muito embora fossem reconhecidos pelos mestres terem habilitações profissionais para poderem subir de posto.
     Foi por estas razões que Filinto Silva, grande defensor do operariado barcarenense, compreendeu essa dificuldade nos seus amigos e indefesos trabalhadores, pois diariamente era assediado pelos empregados, para os informar o que deveriam fazer para poderem subir de posto na fábrica, uma vez que, alguns até já exerciam serviços de responsabilidade, à revelia dos mestres apenas protegidos pelos chefes de grupo e operários antigos que os deixavam fazer por reconhecerem neles habilitações para tal.
    Por estas razões mais que injustas, pois não tinham a culpa das grandes desatenções de Oliveira Salazar, que não exigia essa obrigatoriedade escolar, que Filinto Silva se lembrou de propor à direcção da Fábrica a criação de um curso primário para esses funcionários, afirmando mesmo que era apenas a burocracia que inibia essa gente de subir de posto no seu emprego e obviamente passarem a auferir ordenados mais elevados porque o serviço já vinha a ser feito há muito tempo e com reconhecida capacidade.
  A direcção da Fábrica aprovou a ideia e o grande defensor dos trabalhadores fabris, lembrou-se de convidar o professor Manuel Vaz, seu vizinho e amigo, para dirigir esse curso nas instalações do Grupo Recreativo de Tercena, que tinha criado, recentemente um posto escolar na sua nova sede social inaugurada em 1938.
   Aquele local vago na colectividade destinava-se a uma extensão dos bombeiros indicada e subsidiada pelo grande benemérito Álvaro Vilela, administrador do Banco Espírito Santo, mas como essa ideia causara uma grande polémica junto dos Bombeiros de Barcarena, o comendador, que tinha dado uma grande ajuda para a construção do edifício, determinou então que aquele novo espaço se destinaria à escola primária, o que a Câmara Municipal de Oeiras de imediato aproveitou já que o ensino escolar em Tercena, andava de casa em casa e sem as mínimas condições.
  Naquele novo espaço tudo era diferente, pois havia condições, vestiário, casas de banho e assim começou a funcionar em 1945 e foi para essa escola que os funcionários da Fábrica da Pólvora se dirigiam depois das cinco horas, após as crianças saírem da aula, para aprenderem a ler sob a bitola do grande professor Manuel Vaz.
    Foi estabelecido um curso acelerado, pois era necessário por aquela gente a ler o mais rapidamente possível e durante quatro anos, o tempo que demorou aquela notável iniciativa, os funcionários da Fábrica da Pólvora viram o seu problema resolvido, embora de dois em dois anos, saíssem funcionários com a quarta classe feita, e assim foram muitos que durante aquele tempo aproveitaram, estudaram, aprenderam a ler e escrever e ao cabo de dois anos tinham o tão desejado diploma da quarta classe na mão.
    Foi extraordinária a acção de Manuel Vaz, pois se muitos eram de difícil compreensão, a grande maioria aprendeu facilmente, e foi assim que em cursos de dois anos, os trabalhadores conseguiram o seu diploma que, de imediato, entregues na Fábrica, viam os seus ordenados aumentados.
    Depois de prestarem provas de capacidade profissional, os serventes ascendiam à categoria de ajudantes ou operários, mediante as provas dadas ao Mestre Instrutor Francisco Assis Mafra, que coordenava o serviço de pólvoras da Fábrica de Barcarena.
    Muito antes da guerra de Espanha, nos anos trinta, ninguém entrava para o serviço de pólvoras sem dar provas cabais de saber lidar com o explosivo e os cursos ministrados eram exigentes distinguindo-se nessa época, Pedro Barreiros, vulgarmente conhecido pelo “Pedro da Rosa”, que foi considerado o mais completo operário polvorista, gabado por toda a gente, mas depois, por questões políticas, foi obrigado a abandonar a fábrica e perder o seu emprego o que bastante o prejudicou.
   Na escola de Tercena recordamos pessoas da terra, como o Merciano Luís Dias, conhecido pelo “Sete” que ali aprendeu a ler e passou de imediato a operário, acabando por sua infelicidade, morrer em 1956 numa explosão.
     O Emídio da Mira, o Armando da Rosa, o Garibaldi e tantos outros homens que ali estudaram viram as suas vidas melhoradas, pois ganhavam vinte e oito escudos por dia e logo depois de terem apresentado o diploma escolar, passaram a ganhar muito mais.
   Assim, os ajudantes passaram a receber trinta e oito escudos e os operários quarenta e oito o que era um aumento significativo, e desta forma muitos viram suas vidas bastante melhoradas.
   Manuel Vaz foi considerado um santo para toda essa gente, porque se não fossem as suas aulas, esses funcionários analfabetos jamais veriam mudanças em suas vidas, porque a partir dessa altura, só entrava para a Fábrica gente com um mínimo escolar, nesse tempo, 3ª classe, mas com o passar dos anos o grau de exigência foi aumentando e os trabalhadores antigos, já com muitos anos de casa, não tinham possibilidades de estudar, uma vez que não existiam cursos nocturnos para eles frequentarem e isso, na realidade muito se ficou a dever a Filinto Silva que era funcionário superior da Fábrica da Pólvora e um grande amigo de toda essa desprotegida classe operária.
&&&