A ÁGUA-PÉ SALOIA QUE SE FABRICAVA EM TERCENA E ARREDORES
A água-pé era uma das bebidas mais típicas e famosas da região saloia, e ainda hoje perdura em toda a região, mas com uma procura bem mais diminuta.
Em tempos recuados a água-pé aparecia logo a seguir ao feriado de Todos os Santos, mas por altura do S. Martinho era obrigatória em quase todas as casas dos trabalhadores e isto porque a sua popularidade era tão grande e o desejo de a ter e beber tão óbvio, que toda a gente arranjava sempre tempo para plantar uns bacelos na sua horta e deles retirar as preciosas uvas para delas fabricarem o líquido.
Os que não tinham hortas compravam uvas e faziam o precioso néctar, uvas que vinham das mais diversas regiões afamadas, como Cheleiros, Torres Vedras, Ribatejo ou região de Setúbal.
Ao longo dos tempos houve sempre gente especializada na feitura desta bebida e diziam-se conhecedores a fundo dos segredos de Baco, vindos dos seus ancestrais familiares, uns com alguma utilidade, mas outros sem qualquer interesse.
Havia também os chamados «batoteiros» que fabricavam a bebida por processos pouco ortodoxos, e que acabavam por não merecer a aceitação dos verdadeiros bebedores pois bem lhe notavam sabores esquisitos que nada tinham a ver com a água-pé propriamente dita que se fabricava na região saloia.
Açúcar moscavado, aguardentes vínicas e outros produtos concebiam a bebida, que depois de engarrafada, se tornava bastante espirituosa, mas não era aquela bebida bem conhecida pelo paladar, de todos os saloios.
Nesta arte de fazer agua-pé, que já vem dos primórdios da região, conhecemos o Jorge da Maria Emília que no lugar do Bico preparava uma excelente agua-pé, jeito herdado anos mais tarde pelo Manjerico, que acabou por ser o último homem a comercializar a bebida em Tercena.
O Jorge da Maria Emília fazia a bebida, que era por norma consumida pelos caçadores que nesta altura do ano invadiam as terras de caça de Cabanas e sempre na volta, de regresso a suas casas por ali passavam para provar a bebida e comerem os seus petiscos.
Essa arte, como já dissemos, foi mais tarde herdada pelo Manjerico que chegou a fabricar mais de 3.000 litros e vendê-los nos seus barracões sitos no Pomar junto á sua casa.
O António da Rosa também, vendeu muita água-pé fabricada por si próprio, e a bebida era consumida no Bico num barraco junto ao ribeiro por onde o frio entrava e lhe dava força e espírito, vendida depois na taberna que tinha em Tercena e mais tarde quando já estava bastante velhote, ainda a fazia nos barracões existentes no Mercado Provisório onde chegou a ter ali um talho.
Na horta do Louro na Ferraria também se fabricou água-pé, mas essa era único e simplesmente para seu consumo e dos seus amigos que juntava depois das caçadas, na barraca das alfaias da horta onde aliás, a bebida, cozia e se bebia.
O Barbosa também era especialista no fabrico de água-pé, mas esse, por vezes, aplicava os seus secundários conhecimentos e baptizava a bebida com produtos estranhos para que ela pudesse ter melhor paladar e obviamente durar mais tempo dentro dos barris, já que não vendia a ninguém.
Tinha a mania que só ele é que sabia preparar aquele líquido, e que só a sua água-pé é que era boa, as demais não prestavam para nada.
A bebida, certos anos com grande qualidade de facto, era feita no Canto do João de Péles, por detrás da sua vivenda, a uva normalmente vinha de Cheleiros e a sua chegada era sempre rodeada de grandes secretismos, altas horas da noite, porque quem fosse encontrado a transportar uva sem guias passadas pela Junta Nacional do Vinho era multado, a uva destruída e o vinho era apreendido e arremaçado para as valetas da rua e isso aconteceu com muita gente, que por vezes apenas fabricava a bebida para seu consumo, só que os fiscais que andavam de noite e dia a farejar esses recantos, não perdoavam a ninguém.
A água pé não tinha segredos na sua feitura, mas na realidade havia regas para a fazer e se elas fossem respeitadas não se justificava a bebida sair má.
A qualidade da uva, o cuidado de não lhe misturar lixos aquando era pisada no lagar; a quantidade de água a misturar com o vinho. o tempo que ficava na balça para lhe dar mais ou menos cor; a lavagem dos barris, por forma a não ficarem cheiros nem gostos esquisitos pois isso iria depois adulterar o líquido e dar toda a atenção ao tempo de fervura, pois os barris conforme iam fervendo deveriam ser bem atestados com bebida que se guardava para aquele fim, pois isso iria permitir não dar acidez ao líquido, entre muitos outros cuidados.
Uma recomendação que todos faziam na sua adega, era não deixar entrar mulheres menstruadas na zona dos barris, pois segundo diziam os antigos isso podia estragar toda a bebida, o que não vimos qualquer razão, mas a grande verdade é que esse cuidado era religiosamente cumprido pelo mulherio que frequentava a casa de quem fazia a bebida.
Já o pai do Barbosa, que sempre vivera em Queluz de Baixo também era um grande especialista no fabrico de água-pé, só que este fazia grandes quantidades, em tonéis de grande litragem, para vender e chegou a ter mesmo uma grande clientela nesta altura do ano.
O Lagarto também costumava fazer agua pé para satisfazer os clientes da sua taberna e junto ao casebre onde guardava a burra e a carroça, tinha sempre um ou dois tonéis de trezentos litros e ali fazia a bebida para depois a vender.
Era um grande risco que estes homens corriam, especialmente os comerciantes, em quem se concentrava mais atenções por parte da fiscalização, mas ultimamente os fiscais apenas actuavam por denuncia.
O Lagarto uma vez, depois de praticamente ter vendido toda a agua-pé, deixou ficar um resto no barril em cima da mãe, para de quando em quando beber e dar aos seus amigos mais íntimos.
Tinha enchido uma grande quantidade de garrafas para vender mais tarde na sua loja e o restante era sempre, como ele dizia; «para as suas paródias com os amigos».
O Filinto, o Virgílio do Olímpio e outros rapazes daquela época, enquanto houvesse água-pé no lugar não a largavam e então todas as noites procuravam o Lagarto para lhes vender umas canequinhas.
O Lagarto, àquela hora da noite, já estava cansado do seu rude trabalho diário e por vezes, o que lhe apetecia era dormir e então entregava a chave do barracão ao Filinto para beberem ali umas canecas e depois faziam contas.
Eram pessoas conhecidas e amigas e demais o Filinto tratava da sua escrita e como tal confiava grandemente nele.
Mas foram tantos os dias que aqueles rapazes ali foram ao barracão que o Lagarto acabou por desconfiar.
Pois sabia que já pouca água-pé lhe restava no tonel, e provavelmente só daria para vinte ou trinta canecas, e como é que aqueles rapazes todos os dias lhe pagavam dez e mais canecas que bebiam e isto durante mais de uma semana.
Ao vê-los regressarem da barraca, perguntou-lhes:
«Você conseguem beber a água-pé que está no fim do tonel?... Aquilo já só deve ter borras. E vocês bebem?..»
- Claro que bebemos e está que é uma maravilha. Bebemos três canecas cada um e ainda lá ficou muita bebida.
O Lagarto ficou alertado com a informação, pois sabia e bem o que lá tinha deixado e pelas suas contas, há uma semana que aquele grupinho andava a beber três canecas cada um, o que, pelas suas contas dava uns bons litros de bebida o que não havia de certeza no tonel .
No outro dia foi ao barracão e ao abrir a torneira do tonel, reparou que o mesmo já nada deitava.
A vasilha só tinha borras, e por curiosidade espreitou para debaixo do canteiro para ver as garrafas que lá tinha colocado, devidamente cheias e enrolhadas para mais tarde as vender na sua loja, e outras destinadas ao Crisóstomo Gonçalves chefe da Secretaria da Fábrica da Pólvora .
Qual não foi o seu espanto ao reparar que metade da pilha já não estava lá, e foi então quando constatou que afinal a agua-pé que os seus amigos bebiam todas as noites era da engarrafada e não do tonel.
Quando eles à noite chegaram com o pretexto de irem ao barracão beber, o Lagarto, fingiu nada saber e deu-lhes a chave, só que passados cinco minutos estava à porta da barraca para observar ao vivo a manobra daqueles seus grandes amigos.
Lá estavam eles a abrir uma garrafa, com um saca rolhas que o Filinto levava na algibeira.
Quando entrou, eles ficaram pasmados e assustados, pois não esperavam ali o Lagarto àquelas horas e este deu-lhes um grito, bem típico seu e foi então que os espertos foram descobertos.
Não é que eles lhe tivessem a roubar a bebida, pois todas as noites pagavam o que bebiam, o que aconteceu foi que, mais tarde a água pé, a que se destinava ao Crisóstomo estava quase toda bebida e o Lagarto tinha-se comprometido em arranjar-lhe cinquenta garrafas e depois ficou enrascado.
Muitas histórias se passavam no período da água-pé, só que todas elas não tinham grandes consequências porque existia uma grande amizade entre as pessoas, e depois em primeiro lugar havia que dar sequência à tradição saloia de se fabricar aquela bebida tão apreciada pelos lisboetas que se sentiam defraudados quando, por altura da Feira das Mercês ali a bebiam, diziam que era boa, só que ao provarem a bebida umas semanas mais tarde nestes produtores particulares, constatavam que afinal, bebida boa era aquela que estes amantes fabricavam particularmente e não a que se vendia na Feira.
A água-pé deixou de se fabricar em todas as casas e quintas da região, porque entretanto outros a vendiam em grande quantidade, como o Grupo Recreativo de Tercena, o Manjerico, o Pico do Arieiro, as tabernas locais e outros grandes produtores ocasionais, e a bebida perdurou até aos dias de hoje, sempre feita pelos mais saudosistas, contudo uma das grandes razões da mesma se deixar de fabricar em grandes quantidades nesta região, foi o facto da Junta Nacional do Vinho proibir por completo o seu fabrico, e neste empasse, entretanto as novas gerações também já se tinham habituado a outras bebidas, como a cerveja, a coca-cola entre muitas outras, que deitaram completamente por terra esta grande tradição saloia.
Hoje a água-pé já aparece raramente nestes lugares e agora até, toda a gente a poderia fabricar à vontade porque a Junta Nacional do Vinho deixou de pressionar como antes do 25 de Abril.
A água-pé nesse tempo era expressamente proibida e até o seu nome não podia ser divulgado livremente.
Hoje, até os fornecedores de vinhos a vendem, com esse nome mesmo, só que a qualidade é totalmente diferente, porque é feita com os resíduos da uva que primeiramente faz o vinho, o que aqui não se fazia.
A procura era grande e toda a gente rabiscava os locais de fabrico e venda, nomeadamente os lisboetas, que chegavam a vir de propósito da capital a Tercena, para levarem para suas casas um garrafão para festejarem o S. Martinho, como todos os anos acontecia com o Leitão e o Raúl «Morto», que trabalhavam na Fábrica da Pólvora que neste dia vinham a Tercena comprar a agua pé para à noite a beberem em suas casas com a família ou com os amigos.
As tascas de Porto Salvo não tinham mãos a medir neste dia, casos dos irmãos Canejos, o «Cego» e outros, o Bicharada de Vila Fria, o Alberto de D. Maria entre muitos outros famosos produtores de agua pé saloia.
Ainda e baseados nas histórias que se diziam e aliás se respeitavam solenemente, o dia 10 de Novembro, véspera de S. Martinho era considerado o dia dos «profissionais».
Todos aqueles que ao longo do ano estavam acostumados a beber, mas o dia 11, ou seja o próprio dia de S. Martinho era para os «amadores», ou seja, todos os outros que, com dois ou três copinhos ficavam logo a cantar o fado ou a dormir.
Diz ainda a tradição que foi desse mesmo dia em que todos bebiam e se «enfrascavam», que saíram grandes profissionais da bebida que, a partir de então, jamais bebiam água pé no dia do patrono, mas sim na véspera, pois a sua categoria «bacológica», tinha mudado e isso teria de ser solenemente respeitado.