OS BELGAS E O INSUCESSO DA SUA GERÊNCIA DE VINTE E CINCO ANOS
A Fábrica da Pólvora foi durante os seus últimos anos de existência uma unidade fabril de futuro incerto, já que tanto a gerência belga, como as estatais que lhe seguiram, sempre estiveram repletas de boas intenções, mas indefinidas, acabando por saírem frustradas.
Em Novembro de 1951, Armand Simon Jonet foi colocado na Direcção da fábrica que optara por mudança de nomenclatura, passando a chamar-se Companhia de Pólvoras e Munições de Barcarena.
O Estado português arrendou aquela unidade fabril de fabrico de pólvoras negras a um grupo belga por vinte e cinco anos mas salvaguardou os interesses lusos ficando com 51 por cento do capital e cedendo 49 por cento à nova empresa que tinha como apoio financeiro o Banco Burnay .
Na administração, entre muitos estrangeiros e portugueses foi escolhido para administrador principal residente, o Coronel José Mouzinho de Albuquerque, homem conceituado e respeitado, morador no Cacém, onde hoje se instalou a Consolata, instituição ligada a missões religiosas, homem muito orgulhoso da sua medalha de prata conquistada nos jogos olímpicos de Munique, pois era um exímio cavaleiro.
As intenções da nova gerência era acabar de vez com o fabrico da pólvora negra e trocá-la por uma que fabricasse pólvora branca, idêntica à que se produzia na Bélgica chamada “Ball Powder”, que de imediato passou a ser importada para que a venda em Portugal se implantasse rapidamente.
Os belgas, no entanto, reconheceram que a pólvora negra teria de continuar a fabricar-se em Barcarena por algum tempo mais, porque os consumidores não conhecendo o novo explosivo, próprio para armas de caça automáticas, não a comprariam e a fábrica teria de sobreviver.
Havia um projecto para iniciar o fabrico em Portugal, pois a direcção tencionava montar a fábrica logo que a pólvora importada começasse a ser conhecida e sobretudo vendida, demais que a Fábrica de Moscavide, a INDEP começava a ser contestada por se encontrar dentro da povoação e causar muito perigo o que aconteceria em 1957, mas fechando de imediato devido a outros interesses.
A grande verdade é que os portugueses consumidores das pólvoras negras, não abdicavam desta, pois conheciam bem os efeitos da velha Diamantina nº 1, nº 2 e 3, da Pólvora G e tantas outras mais fraquinhas, porque as suas armas eram antigas e não arriscavam a mudança com medo que as suas velhas armas, a maioria de cães, não aguentasse o impacto produzido pelo novo explosivo laminado.
Logo aí os belgas começaram a ver que o sucesso não surgia com a rapidez desejada pois os estanqueiros espalhados por todo o país, experimentavam mas só os caçadores que já tinham adquirido armas modernas a experimentavam, mas francamente eram tão poucos que as vendas eram resumidas em relação às pólvoras de caça, negras.
Também é verdade que a facturação baseava-se muito mais na venda de pólvoras para minas, pedreiras, como a grafitada e outras e como tal eram ainda o grande sustentáculo dos cerca de duzentos empregados que a fábrica possuía, pois o contrato obrigava a manter o pessoal existente, considerado do Estado, por ter sido admitido antes da Companhia de Pólvoras e Munições de Barcarena existir.
O fabrico de artefactos para a marinha, socorros a náufragos e outros artigos de guerra, como granadas de mão defensivas, ofensivas, petardos de caminho de ferro, tudo isso completava a facturação, mas as vendas eram reduzidas, pois praticamente era o governo português o melhor cliente, que comprava esses produtos para treino das suas tropas, uma vez que a II Guerra Mundial tinha acabado à relativamente pouco tempo, mas corriam rumores de novos conflitos e era necessário manter os “stoks” em ordem para no caso de uma deflagração internacional, a fábrica pudesse corresponder de imediato.
Mas a administração não desistia e teimava no sucesso da nova pólvora, porque os armeiros já vendiam essas novas armas e acreditava-se que ano menos ano a nova fábrica de pólvora branca pudesse surgir em força, já que existiam projectos para a mesma e como tal criou, dois anos depois em 1953, quadros laborais que na altura não eram muito necessários, como assistentes sociais, altos funcionários prospectores, e uma grande quantidade de servidores tomando em conta a ideia assente da construção da nova fábrica de fabrico de pólvora branca a M1 que servia bem os interesses dos belgas.
Em 1957, foi construída a Fábrica de Pólvora M1 para a produção de pólvora de base simples (nitro celulose) que, acabaria por encerrar e entregue à Fábrica Nacional de Munições de Armas Ligeiras e isto por que a Guerra de África afigurava-se com boas perspectivas de fabrico de outros materiais, pois tinha sido construída a sexta secção que fora criada para o carregamento de granadas à base de trotil e tetril, por isso o número de empregados subiu aos seiscentos, com uma grande percentagem à base de mulheres.
Entretanto tinha sido admitido o filho de um administrador, chamado Nuno de Lima, cuja família estava radicada em Angola em Novo Redondo.
Este senhor mantinha várias roças em Angola, que produziam altas quantidades de café, entre outros produtos.
Possuía também uma extensa frota de barcos de pesca que bastante rendiam à empresa angolana, mas ele, em vez de se manter na colónia à frente dos negócios, antevendo um conflito interno, preferiu Lisboa e como tal o pai arranjou-lhe aquele “tacho” para, não só, poder manter as suas brincadeiras, como entreter-se com qualquer coisa dentro da Fábrica da Pólvora que fosse da maior utilidade o que nunca aconteceu.
Tudo parecia correr bem, demais que deflagrara a guerra de África e as ideias mudaram-se repentinamente pois a criação da fábrica de pólvora branca passou para segundo plano, optando-se por se fazer uma parceria com a Fundição de Oeiras e assim aconteceu.
A Fundição de Oeiras construía as embalagens metálicas de diversos calibres de granadas e outro tipo de material bélico, entretanto Salazar enchia os barcos de militares para defender Angola, Moçambique e Guiné e era preciso abastecer essa gente para combater as forças revolucionárias ali existentes.
Esta guerra que deflagrou em 1961 estava a causar um enorme descontentamento no seio da população portuguesa que via a sua juventude desaparecer aos poucos acabando por enfraquecer os serviços no continente, já que eram as mulheres e os idosos que se obrigaram a tomar conta desses serviços, especialmente agrícolas.
A governação das possessões ultramarinas estava praticamente a ser coordenada pelos grandes senhores radicados em África, já que os ricos tinham adquirido a quase totalidade das grandes empresas africanas e obrigavam os negros a trabalhar a baixos salários e mesmo sabedores de que a escravatura já tinha sido abolida, a verdade é que toda aquela gente era tratada como que escravos fossem, sem regalias, trabalho duro de sol a sol e isso começou a revoltar o povo africano, obrigando-o a lutar por melhores dias, criando guerrilhas aqui e acolá e sobretudo para que lhes fosse dada a independência, que contrariava Salazar que via ali uma grande riqueza.
Foi este grande negócio, a venda de material para África, que ainda ia mantendo a fábrica da pólvora de Barcarena, porque de resto, com as novas estruturas e renovados quadros de pessoal, a pensar único e simplesmente na mudança de fabrico de pólvora, certamente tudo iria dar em desastre financeiro, como acabaria por acontecer.
Criaram-se vícios de laboração administrativa que pouco produziam. Todos os funcionários admitidos para os serviços administrativos, nada faziam, e a grande verdade é que, se não fosse o fabrico da pólvora negra que se mantinha fiel aos seus princípios, a fábrica, muitos dos meses não tinha dinheiro para pagar aos seus funcionários, já que os valores da facturação do carregamento de granadas chegava sempre muito tarde aos cofres de Barcarena, porque na realidade as três frentes de guerra em África que Salazar teimosamente mantinha, custava-lhe muito dinheiro, e como tal Barcarena, produzia aquele novo material mas para se manter, era a base dos seus antigos e obsoletos produtos, como era considerada a pólvora negra.
Em 1974 quando acabaram as guerrilhas devido à revolução dos cravos, Barcarena veio a saber que tudo aquilo que produzia e embarcava para o ultramar e outros portos africanos e facturado em nome do governo alemão, destinava-se a servir as tropas rebeldes que acabavam por matar os nossos soldados.
Isso foi descoberto por os grupos de defesa instalados em África quando avançavam com os seus giros dentro das densas selvas para manterem a ordem e combater os insurrectos negros, encontravam no chão embalagens vazias, abandonadas e já utilizadas que diziam ser fabrico “mad in Barcarena – Portugal”, concluiu-se então que Salazar vendia material aos alemães, para estes revenderem aos países aliados das tropas revolucionárias, por norma países que faziam fronteira com Angola, Moçambique e Guiné.
O povo português e sobretudo os militares que lá tinham combatido sentiram uma grande revolta, mas a grande verdade é que o ditador já tinha falecido, e pouco ou mesmo nada se podia fazer, porque as ordens eram dele e posteriormente de Marcelo Caetano, só que este também já estava refugiado no Brasil e tudo ficou sem haver qualquer retaliação.
Em 1976, uma vez terminada a guerra de África, a Companhia de Pólvoras e Munições de Barcarena deixou de existir, também porque tinha terminado o contrato estabelecido com o Estado português, e naquele quarto de século de laboração nunca conseguiram concretizar os seus intentos.
A Fábrica M1 começou então a funcionar mas já com grandes dificuldades económicas, para produzir pólvora branca laminada, com a designação de Fábrica de Pólvora e Explosivos de Barcarena, nomenclatura que manteria a partir desse ano até ao seu encerramento.
Entretanto nos anos sessenta, na fábrica de Barcarena as produções aumentaram consideravelmente, o material de guerra era produzido em força, com os trabalhadores a laborarem continuamente, pois chegou a haver trabalho dentro da fábrica 24 horas por dia, dividido em três turnos de oito horas, tal era o ritmo de saídas para o estrangeiro, pois todas as semanas iam dezenas de camionetas descarregar material bélico à Rocha de Conde de Óbidos com destino a África, e embora muito fosse para as nossas tropas, nunca se percebeu, que algumas das encomendas dirigiam-se a outros portos, pois eram aquelas que Salazar vendia ao governo Alemão, para abastecer os inimigos de Portugal.
A admissão de pessoal terminou em Barcarena e todos quantos optavam sair, já não eram substituídos.
Entretanto, alguns empregados antigos foram atirados para a reforma e do pessoal moderno, admitido pela gerência belga, parte dele optara por outras fábricas onde ganhavam mais, pois coincidiu com a instalação em Portugal das Multinacionais em Queluz de Baixo e assim, aos poucos a despesa em Barcarena foi diminuindo, mas continuava a ser a venda de pólvora negra que sustentava a fábrica de Barcarena alimentando ainda o sonho da nova gerência.
Os directores foram mudando, pois saía um entrava outro que vinha com novas ideias, mas a grande verdade é que já não havia soluções para que a empresa se pudesse manter, fazendo-se todos os meses uma grande ginástica financeira para se arranjar o dinheiro para os salários e vencimentos.
Com o passar dos anos, a fábrica via os seus sonhos esfumarem-se pois aquilo que a direcção pretendia ver desenvolver-se, a venda de pólvora branca, mantinha um ritmo baixo, constatando os seus responsáveis, que não valia a pena insistir naquela nova linha de fabrico com aquele novo tipo de pólvora e o definhamento foi aparecendo aos poucos, mas os empregados superiores, esses foram-se mantendo, sem nada fazerem, sem nada produzirem.
Ainda, no tempo da companhia de Pólvoras e Munições de Barcarena chegou-se a pensar no carregamento de cartuchos de caça, com a nova pólvora belga importada, mas a negligência foi de tal ordem, que os cartuchos depois de carregados, ficavam mais caros que aqueles que se vendiam na concorrência.
Nuno de Lima, o filho do administrador, que nunca fez nada dentro da fábrica senão pensar nas suas brincadeiras com o seu potente “Corvert”, carro de turismo e divertimentos com algumas funcionárias, mantendo um ritmo de reuniões com grupos femininos em locais recatados da fábrica, como a sala de reuniões da administração depois das horas laborais, ainda pensou nessa fábrica de cartuchos, mas também tudo se esfumou ao constatar os resultados.
Este homem ainda pensou na criação de uma linha de montagem e carregamento de cartuchos de caça numa velha oficina da 5ª secção, onde se fabricavam artigos para a marinha, mas as contas foram mal feitas, pois para carregar cartuchos era preciso um engenheiro responsável, um mestre para dirigir o pessoal, um chefe de grupo e apenas dois funcionários, acrescido do vencimento dele próprio, que era elevado.
O vencimento destes, somado com mais os encargos da verdadeira fabricação e carregamento dos cartuchos de caça, tornava o produto acabado incomportável, pelo que teve de acabar passado pouco mais de um mês de iniciada essa experiência.
Um insucesso, que juntamente com o verificado com a ideia de se fabricar pólvora branca, acabaria por levar a gerência belga a um enfraquecimento, que viria a acabar de vez com uma infeliz tragédia, em 30 de Novembro de 1972 que deu origem à morte de seis operários polvoristas na secção de pólvoras.
A tragédia abalou o pessoal fabril e demais que a inspecção que regulava este tipo de fabricos, optou por não aprovar as obras de recuperação do edifício sinistrado, por considerar a fábrica da pólvora muito obsoleta, com máquinas do tempo ainda do princípio do século e assim naquele fatídico dia, a oficina da Fonte Caiada explodira pela última vez, a mesma ficou condenada ao seu encerramento, assim, como todas as outras, passando a fábrica a viver dos “stoks” que ainda possuía que acabaram por esgotar facilmente, e a venda de artifícios e material de guerra para as nossas tropas, e marinha mercante o que na realidade era bastante fraco, mas mesmo assim ainda conseguiu durar mais quatro anos, já com pouco pessoal e na sua maioria completamente desmotivado para poder arranjar ideias que pudessem dar outra vida e ânimo aquela unidade fabril, mas a explosão de 1972 acabaria por ser o golpe de misericórdia na Companhia de Pólvoras e Munições de Barcarena.
A Fábrica que existiu durante cerca de quatrocentos e quarenta e oito anos, tomando em consideração os anos que laborou de forma artesanal e descoordenada, só a partir de 1729, com o aparecimento da Real Fábrica da Pólvora de Barcarena tomou um cariz sério, organizado e coordenado, com a entrada de António Cremer que transformaria por completo os sistemas de produção e de segurança daquela importante unidade fabril portuguesa.
Em 1995 a Câmara Municipal de Oeiras adquiriu as instalações da Fábrica da Pólvora por dois milhões de escudos, transformando-a num complexo aberto a todos e em 1998, foram então instalados alguns serviços da CMO, entre eles ao criação do Museu da Pólvora Negra, assim como outras benesses naquele espaço de 44 hectares com actividades culturais, lazer e divertimento o que agradou a toda a gente.
A gerência belga que pretendia transformar o obsoleto numa unidade de fabrico moderna e rentável, duraria apenas o tempo que constava no contrato de arrendamento, 25 anos, mas sempre envolvida em insucessos, frustrações e planeamentos errados, pese embora tivesse sido atraiçoada por mais uma das irreverências de António Oliveira Salazar, que se por um lado foi letal para a juventude portuguesa, ainda foi o balão de oxigénio dos belgas que assim foram protelando o definhamento e desmantelamento dos seus ambiciosos projectos, mas o desastre de 1972 atiraria com todos os seus sonhos para um abismo sem hipóteses de recuperação.
Mas a grande verdade é que mesmo as gerências estatais que lhe sucederam, melhor não conseguiram fazer e hoje há uma grande felicidade por vermos aquele espaço, onde a morte andou sempre por perto, criando dor e luto, transformado num local onde reina a alegria, a diversão, a cultura e o lazer, recebendo milhares de visitantes por ano.
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