domingo, 3 de abril de 2011

Até parece que o passado regressou como no tempo das "Macanitas"

TUDO VOLTOU COMO HÁ OITENTA ANOS ATRÁS

Afinal, as macanitas iniciaram este ciclo de miserável viver, prenúncio de uma velhice indesejada, quando tudo se fez, tudo se sacrificou e lutou para que isso não acontecesse. Que houvesse de facto um amanhã florido, risonho e farto, reiterado nessa manhã feliz, mas mentirosa, criada pelos bravos capitães de Abril, mas hoje, bem ao invés, constatamos que a miséria, o infortúnio, a desdita e a solidão, acabaram por, malogradamente, voltar a estamparem-se no tostado rosto dessa pobre gente, nas engelhadas, calejadas e enrugadas mãos desses antigos e fiéis trabalhadores, tal qual como se verificara há sete e oito décadas atrás. 
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     Muito se tem falado das mulheres que para a região saloia de Barcarena vinham trabalhar, nomeadamente para os campos agrícolas de Cabanas e muito se recorda ainda desses amargurados tempos, pois as diferenças de vida parecem de facto não existirem, embora os tempos tivessem mudado radicalmente.
    Gente que aparecia por aqui vinda do Oeste, desembarcada na estação de caminho de ferro do Cacém e que a pé, ou em carroças se dirigia para os casais da periferia para o amanho dos terrenos, dedicado ao ciclo do trigo, cultivo que se intensificava fortemente nesta área.
     Mulheres que aqui apareciam sazonalmente de Abril a Junho, envoltas em sonhos, desejosas de vencer, de arranjar melhores empregos, com muitas, por essa razão, a optarem por ficar por cá e não regressarem ás suas terras, por entenderem que, perto da capital, teriam muito mais possibilidades de vencer na vida que, isoladas nas suas aldeias frias e vazias do interior da Estremadura.
     Muitas acabaram por casar, arranjar companheiros trabalhadores e dedicados e vingarem na vida, como ainda hoje encontramos na freguesia de Barcarena, conjuntamente com seus filhos e netos, comungando uma vida melhor é certo, mas muito marcada pelas condicionantes e exigências dos governos actuais.
    Uma vida melhorada no aspecto físico, onde parece haver felicidade, estabilidade, mas confrontada com os problemas inerentes ao mau desempenho dos actuais regimes, que tudo fazem para engrandecerem os grandes senhores deste país, esquecendo por completo os mais desfavorecidos, nomeadamente essa camada de gente que infelizmente faltou à escola para ganhar a sua vida.
     Pessoas pouco letradas que acabaram por alcançar reformas de fome, verdadeiramente miseráveis, valendo-lhes alguns valores tomados por herança e pouco mais.
    Outras, no entanto, ao regressarem a suas terras, não foram felizes, tendo dado continuidade às dificuldades que sempre encontraram na vida, e ainda hoje parecem não ter encontrado o trilho certo.
   Nessa época, no seu dia a dia atribulado, muitas infelizmente enfrentaram a morte e ainda houve quem tivesse ficado marcada com filhos nos braços, devido a falsas promessas de homens sem preconceitos, que apenas conversavam com as raparigas para distracção, longe de pensarem a sério na vida.
     A maioria dessa gente de trabalho, foi infeliz, devido aos maus dias que passaram nesses campos, pois, isoladas, vivendo temporariamente em frios casarões, acabaram por contrair doenças graves, como a tuberculose e não resistindo pouco depois.
     Lembramos que, a falta de alimentação era uma constante, só com o sentido de juntarem dinheiro para com ele satisfazerem dívidas deixadas na terra, acabando por condenar o seu futuro, motivando um enorme desgosto a seus familiares.
     Por isso, hoje quando falamos das macanitas, lembramos apenas os momentos alegres que elas proporcionaram, nos bailaricos que organizaram nos desconfortáveis casais, nas cantigas que entoavam enquanto, vergadas sobre os trigais, ceifavam as louras espigas, ou mesmo com a sua brejeirice, em redor dos rapazes fazendo-lhes a cabeça louca de amores, quando afinal tudo não passava de um simples divertimento para mais rapidamente se passar aquela dura temporada.
   Ao recordarmos todos estes alegres momentos, esquecemos as suas desventuras, pois muitas para não perderem a magra jorna diária, acabavam por ter os filhos em plena seara, como acontecera com algumas.
     Sem condições, eram assistidas apenas pela curiosidade das colegas, ou por a ocasião repentina se proporcionar, pois nem sequer sabiam o que fazer naquele momento de aflição, mas lá aparecia um voluntário que conhecia alguém na aldeia que corria aflito em busca de uma curiosa que entendesse algo mais de partos, como chegamos a assistir, com a “ti” Emília Saragoça a largar os seus domésticos afazeres, para socorrer no meio do trigal, a rapariga que estava em situação de parto.
      Algumas bebiam água para matar a fome, ou comiam pão esquecido e bolorento na mala desde que chegara ao casal, ou ainda aquelas que se alimentavam diariamente de café e pouco mais, mastigando como alternativa, frutos silvestres que colhiam quando caminhavam para o degredo da monda, ou que, por acaso existissem nas árvores das redondezas do casal onde dormiam, porque o que amealhavam não era compensador para as doenças que mais tarde contraíam.
     Outras acreditavam nas promessas de seus conversados, francamente amores arranjados na ocasião, e que se perdiam logo que terminava a tarefa, crentes numa vida boa no futuro, mas que depois, ficavam agarradas aos filhos que mantinham na barriga e que, por vergonha de aparecerem assim na terra, davam-se ao desgosto, acabando por morrer tísicas, como conhecemos algumas.
  A macanita era uma mulher marcada pelo infortúnio, ou já não bastasse o seu duro trabalho de sol a sol, a fome que muita das vezes passava, o frio que sentia na sua dura e desconfortada enxerga, formada por uma simples esteira sobre velhas tábuas colocadas para servir de improvisada cama.
    O calor que nos dias de estio suportavam, debaixo das chapas escaldantes de zinco que serviam de telhado e tecto das barracas onde se obrigavam a viver.
    Foram todos esses maus tratos que as levou a contrair graves e letais doenças, umas suportando e superando nas suas terras, mas outras nem tanto, ficando pelo caminho, agarradas a sonhos utópicos, enfim, a uma vida de grandes sacrifícios e desprazeres.
    Hoje, lembramos tudo isso, quando falamos das macanitas e que saudades sentimos de as ter deixado de ver debruçadas no seu dia a dia sobre as verdes searas, aquando mondavam, ou quando ceifavam as louras espigas na encosta do lugar do Bico.
    Recordamos com alguma tristeza ao vermos todos esses trigais extensos de Cabanas trocados, por amontoados e inestéticos blocos de betão.
    Ficamos admirados como tudo se mudou de um momento para o outro. Terrenos bem cheios de vida cinegética, como perdizes codornizes, coelhos, lebres e toda a espécie de passarada de arribação, que procurava estas paragens por saberem que aqui havia alimento com fartura e que, davam gozo aos caçadores que, na época própria perdiam o seu tempo caçando essa real abundância.
    As macanitas, hoje desapareceram, restam as que ainda, felizes vivem nesta terra, só que quando lhes falamos deste passado tempo, deixam cair uma breve gargalhada e apenas respondem sem saudosismos evidentes, “tempos para esquecer, pois foram demasiado maus e que se desejam que não regressem, mas hoje apesar de já não vermos esses loiros campos, aparecem outras, ainda mais graves, contrariedades”.
      “Felizmente que não voltam”, garantem ainda alimentando uma ténue esperança, mas a verdade é que com esse seu desaparecimento, deixou de haver abundância de pão, de trabalho e afinal de quase tudo, inclusivamente de alegria, pois tudo passou a ser importado num ritmo de vida taciturno.
     O trabalho desapareceu, aumentando consideravelmente as listas de desemprego e afinal os governos lutam para conseguirem repor as exigências impostas pela Comunidade Europeia, onde erradamente os portugueses aderiram e assim se vive, do resto dos outros, comendo mal, caro e sem qualidade, tal qual como no tempo dessas antigas trabalhadoras do campo.
     Para se sobreviver ter-se-á de fazer uma enorme ginástica, tal qual nessa época, sem se saber o que fazer e que medidas tomar, por isso, quando recordamos as macanitas, apenas podemos, malogradamente, constatar que, pelo menos aquelas que não tiveram a sorte de granjear um “pé de meia”que lhe garantisse um futuro melhorado, continuam a viver mal, como nesse tempo.
      Numa época, que devido ás grandes restrições impostas pela ditadura de um governo, ainda se vivia com alguma alegria por se conhecer bem as drásticas regras do regime, e respeitá-las solenemente, mas hoje, em plena democracia, em liberdade e igualdade, como erradamente se afirma, vive-se pior e com tristeza.
     Desconhece-se o dia de amanhã devido a tanta ameaça social, só para que os grandes possam cada vez ser mais ricos, nada se importando que as pessoas desse antiga época, velhos agora e sem forças para nada, passem novamente tremendos sacrifícios, para poderem sobreviver, e ainda roubando, para enfraquecerem cada vez mais a sociedade mais desfavorecida.
     Essa infeliz gente ainda acredita, ainda mantém fé, quase como que um castigo masoquista, mas a grande verdade é que as irregularidades desses senhores vão sendo esquecidas pelas desajustadas e variadas leis que correm nos tribunais portugueses, mas o pior são as ameaças que são feitas, devido aos grandes interesses da Comunidade, por parte de países ricos e considerados grandes potências.
     Incrível e desavergonhadamente exigem até a esses pobres que auferem reformas de fome, conseguidas através de uma vida de duro trabalho, que façam sacrifícios, nem que suas vidas já não estejam bem repletas deles, congelando, ou mesmo diminuindo os magros valores, aumentando ainda mais o sacrifício desses eternamente sacrificados.
     Ah pobre gente, quais macanitas do princípio do século passado, que têm um drama garantido até ao fim da vida e a velhice maltratada, acabando numa cova sem fé, sem carinho e sem tostão para mitigar a fome que surgirá inequivocamente até ao dia do juízo final.
    Afinal, as macanitas iniciaram este ciclo de miserável viver, prenúncio de uma velhice indesejada, quando tudo se fez, tudo se sacrificou e lutou para que isso não acontecesse. Que houvesse de facto um amanhã florido, risonho e farto, reiterado nessa manhã feliz, mas mentirosa, criada pelos bravos capitães de Abril, mas hoje, bem ao invés, constatamos que a miséria, o infortúnio, a desdita e a solidão, acabaram por, malogradamente, voltar a estamparem-se no tostado rosto dessa pobre gente, nas engelhadas, calejadas e enrugadas mãos desses antigos e fiéis trabalhadores, tal qual como se verificara há sete e oito décadas atrás.  
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