quinta-feira, 28 de junho de 2012

BAIRRO DA FERRARIA
 UM EXEMPLO DE BAIRRO COMUNITÁRIO
    Este bairro criado no início do século passado, existente na Fábrica da Pólvora de Barcarena, foi considerado um exemplo de comunidade social feliz e humana, onde viveram em conjunto cerca de uma centena de pessoas, que vingou apesar das muitas carências impostas pelo regime salazarista, apenas no sentido de manterem o pão de cada dia ganho naquele verdadeiro degredo.
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     Quando se fala da Fábrica da Pólvora quase toda a gente que ali trabalhou garante que foram tempos maus, sem alegria pois andavam sempre os trabalhadores agarrados ao espectro das explosões, temendo pela sua vida.
    É verdade que essa ideia ocorria de quando em quando, mas a grande realidade é que se passavam muitos meses que essa ideia não aparecia, porque apesar de temerosa, aquela unidade fabril tinha épocas em que as pessoas viviam alegres, motivadas e sobretudo muito unidas.
     A união e fraternidade foram sempre as grandes características dos trabalhadores fabris, pois
A antiga rua dos Polvoristas hoje modificada e arranjada
 comungavam todos da mesma ideia, havendo consenso no entendimento, vivendo todos abrangidos pelo mesmo estatuto social, tendo como base a pobreza é certo e como tal, mais não podiam fazer que estimarem-se uns aos outros e viverem em conjunto da forma mais pragmática, embora reconhecidamente de modo modesto e por vezes mesmo muito difícil, devido às exigências e castigos impostos pelo Estado Novo que dominava o país.
     Havia grande entreajuda nessa gente que habitava o bairro da Ferraria na Fábrica da Pólvora, composto pelas três artérias ali existentes, Rua dos Sargentos, Rua dos Polvoristas e a Calçada do Louro, uma zona que existia para lá da ponte metálica sobre o ribeiro, onde não podia chegar uma viatura, mas onde morava a maioria dos empregados daquela fábrica.
     Chegamos a contar mais de uma centena de pessoas que nesse bairro vivia e toda esta comunidade nos dias
Calçada do Louro com o caminho arranjado o que não estava antigamente
livres divertia-se, organizava-se e sobretudo apoiava-se uns aos outros, pois se um tinha necessidade disto ou daquilo, logo aparecia alguém que os remediava, por isso, foi sempre considerado um verdadeiro exemplo a vivência entre as pessoas moradoras nesse já extinto bairro da Fábrica da Pólvora.
   Mas se custa a acreditar, quem conhece aquele espaço hoje, que ali pudesse viver alguém, a grande verdade é que apesar de termos conhecido uma centena de pessoas a habitar ali, ninguém vivia em barracas, a exemplo do que conhecemos em Paris, no chamado “bidonville”, pois toda a gente morava dentro de casa de alvenaria e não em barracas feitas com toscas madeiras e cobertas a chapa de bidões velhos, verdadeiros fornos no verão e geladeiras no Inverno.
   Eram casas, na sua grande maioria, construídas a tijolo, com divisões exteriores feitas em pedra tosca é certo, mas bem arranjadas, muitas possuindo até canteiros com alegres flores, mas os acessos, esses eram de facto horríveis, pois para lá da ponte metálica, o caminho era tosco, de pedra solta, tipo carril, onde uma pessoa custava a passar, mas era obrigatório enfrentá-lo, porque a meio ficava o chafariz, denominado “A Fonte dos Passarinhos”, água vinda de uma nascente existente a meio da montanha onde a passarada saciava a sede, que possuía sempre água fresca e como não havia ainda fornecimentos ao domicílios, era obrigatório consumi-la.
 Neste parco espaço ainda existiam locais destinados à agricultura, pois quase todas as famílias possuíam uma pequena horta, o grande sustentáculo das famílias, pois sempre colhiam anualmente legumes, base da alimentação de toda aquela pobre, mas feliz gente.
  A boa disposição era tal e a felicidade tão grande, que na época dos santos populares organizavam alegres festejos, onde não faltavam as quermesses, o bar com vinhos e bons petiscos, animados bailaricos, juntando dinheiro para mais tarde, poderem organizar excursões e foi assim que muitos conheceram grande parte do país, pois o Leonel Albino, que morava mesmo no cimo do bairro, numa bem arranjada moradia pertencente ao António Louro, organizava com mestria, pois nessa época podia considerar-se a pessoa com mais conhecimentos que ali vivia, qual chefe da “Clã Ferraria”, pese embora todos os restantes fossem pessoas habilitadas nos seus trabalhos, e ganhando parcos ordenados, mas suficientes para viverem regularmente com as suas pouco exigentes famílias.
   Nasceram no bairro, enquanto funcionou, dezenas de crianças que mais tarde acabaram por ocupar o lugar
Rua dos Polvoristas hoje completamente arranjada
 dos pais, mas a grande maioria zarpou para os lugares da freguesia, onde as casas eram diferentes, mais amplas e sobretudo reunindo melhores condições de vivência.
   No seio daquele bairro, fazendo fronteira com o ribeiro, existia a vivenda das “Pipis”, assim era conhecida por nela viver uma família composta por seis pessoas, sendo que duas das raparigas eram gémeas, sempre muito bem vestidas, e terem a particularidade de serem muito bonitas.
  Apesar de pertencerem a um estrato social superior, aquela família sempre se deu bem com os seus vizinhos, porta com porta, e como tal, quase utilizava o mesmo modelo de vivência, só que a quinta possuía grandes recursos e isso era fundamental para a comunidade e uma mais valia que muito ajudava quem vivia por ali perto.
  Também no outro lado do tosco caminho, existia a horta do António Louro que, pelo enorme espaço que ocupava junto ao ribeiro era um local onde todos os legumes se davam e o Louro, pessoa muito aberta, divertida e amiga dos seus vizinhos, repartia com todos parte dos produtos que ali criava, uma vez que o terreno era da Fábrica da Pólvora e ele apenas dava a sua mão de obra para poder criar toda a gama de legumes e frutos.
  Naquela época eram as hortas, as capoeiras com galinhas, coelhos e outros animais, como as vacas que o Eduardo do Albano chegou a criar, sustentadas com os restos de comida, que ajudavam aquelas famílias, pois até porcos ali se criaram e na altura da matança, fossem de quem fossem, havia sempre um naco de carne para distribuir irmãmente pelos vizinhos, amigos e sobretudo por aqueles que ajudavam a criá-los, nas suas horas de descanso. 
    Para dar apoio a toda esta gente, existia, mesmo construído quase no leito do ribeiro, uma casa feita em madeira, assente numa base sólida de betão, mas reunindo excelentes condições, que já vinha do tempo das guardas militares que ali funcionaram no início do século e que guardavam a Fábrica Militar, que mais tarde se transformaria num estabelecimento comercial.
  Após os militares deixarem a fábrica e a mesma ter passado a ser guardada por guardas criados pela própria unidade fabril, nomeadamente nos anos quarenta, aquele casarão foi transformado em casa de pasto, taberna e mercearia, alugada pela Rosa do General, casada com um homem que era pedreiro, e possuía aquela alcunha sem nunca ter sido militar, só que nutria muito jeito para o comércio.
    Era aquele espaço o local de encontro, principalmente
Rua dos Polvoristas tal qual como era antigamente, desenho de Fernando Silva
 dos homens, já que as mulheres, por vezes em recurso, abasteciam-se ali de alguns géneros, porque de resto forneciam-se nos lugares e mercearias das localidades vizinhas, como Tercena e Barcarena, muito especialmente na cooperativa do pessoal operário da Fábrica da Pólvora.
    E com estas benesses, a boa disposição de todos e sobretudo a grande unidade entre os moradores, fizeram daquele bairro um local de referência e um verdadeiro exemplo de como se pode viver feliz, com parcas condições, mas dotados de uma grande unidade, espírito altruísta e muito humanismo.
    As pessoas foram morrendo, outras melhorando as suas vidas, mudando-se para outras localidades com o passar dos anos e no início dos anos cinquenta o bairro já estava completamente transformado, com parte das casas demolidas até que em 1951, com a aquisição da fábrica por parte duma companhia belga, tudo ficou a degradar-se, acabando por vir a ser tudo destruído quando a Câmara Municipal de Oeiras, em 1988, adquiriu a Fabrica da Pólvora para a transformar num local de lazer e cultura destruído o velho casario que restava.
     Passaram a viver ali, apenas duas ou três famílias, cujas casas reuniam razoáveis condições e uma delas era mesmo propriedade de um empregado da Fábrica, mas os acessos pouco foram melhorados, até que hoje, com a aquisição por parte da Câmara Municipal de Oeiras de todo aquele espaço, 44 hectares, apenas existe as instalações da Universidade Atlântica e moradores, antigos funcionários da fábrica, apenas sabemos que duas famílias ainda ali habitam.
      Uma delas na rua dos Sargentos e a outra na antiga propriedade do António Louro, que apesar de todas as benesses e obras ali realizadas, continuam a ter acessos difíceis, não podendo ir até à porta de sua casa qualquer viatura, mas as pessoas continuam vivendo de forma alegre e em condições aceitáveis, com ambas as famílias, provavelmente a desconhecerem o quão importante foi aquele bairro social no início do século passado.
  Gente que hoje ignora completamente quantas alegrias e tristezas ali se passaram e novas vidas ali foram concebidas.
  Gente que apesar de lidar com a morte no seu dia a dia, vivia feliz, organizada e sem grandes problemas e atropelos sociais, pois bem entendiam que a vida naquele tempo, imposta injustamente à classe trabalhadora por António Oliveira Salazar era assim mesmo, pois se pretendiam viver sossegados mais uns anos e sobretudo auferirem o magro ordenado referente ao trabalho que produziam para o estado português, tiveram que organizar suas vidas nestes retrógrados moldes, calar a boca, tapar os olhos, aliás, atitudes bastante vulgares em quase todas as zonas do país.
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