O IMPORTANTE TRILHO QUE LIGAVA
O LUGAR DO BICO AO CASAL DE CABANAS
Antigamente havia muito caminho rural, por onde apenas passavam pessoas, animais e carroças ligeiras, para se poder alcançar certos locais nas serranias, ou nos campos de cultivo distantes dos respectivos casais agrícolas.
Em Torcena, existia um trilho que levava as pessoas desde o lugar do Bico ao Casal de Cabanas, que começava mesmo junto ao ribeiro que atravessava aquela pequena povoação onde viviam pouco mais de meia centena de pessoas e passava mesmo ao lado do cerradinho onde os caçadores, por norma, descansavam para almoçar.
O caminho iniciava-se na margem direita do ribeiro e serpenteando por entre os combros que separavam as terras de semeadura, com o seu piso tosco e irregular com pedras soltas, buracos, que dificultavam imenso quem se obrigava a caminhá-lo, atingia-se o casal, de onde partiam outros trilhos, para S. Miguel da Serra, Leião, Talaíde, S. Marcos, ou Cacém.
Pouco mais que um quilómetro distava desde o Bico ao casal agrícola onde trabalhavam muitas pessoas, nomeadamente mulheres, as bem conhecidas macanitas, que ali eram colocadas sazonalmente para fazerem o seu trabalho ligado a cultura do trigo, pois iniciavam a tarefa em Abril, estendendo-se até finais de Junho, depois de participarem na ceifa e finalmente nas debulhas e arrumo dos cereais e palhas nos armazéns.
O caminho era ladeado de abrunheiros, figueiras e muitos silvados, que no seu tempo davam os seus saborosos e cobiçados frutos, que eram a delícia da juventude da época pois muitos aproveitavam para com eles fazerem a sua refeição já que as dificuldades eram imensa naquele tempo.
As negras amoras eram uma guloseima, os doces figos e os acinzentados medronhos, colocados em camadas envoltos em palha debaixo da terra, constituindo um verdadeiro tesouro dos rapazes, pois só eles é que sabiam onde eles se encontravam, para depois, quando estivessem maduros, os comerem regaladamente.
O caminho acabava por ser bastante fértil, pois para além destes alimentos, ainda criava, nas suas acidentadas e densas margens, saborosas azedas, que o mulherio apanhava para confeccionarem uma saborosa e económica sopa, assim como os esverdeados espargos, que embora fossem bravos, eram uma delícia e um alimento extraordinário.
Aqui e acolá encontravam-se zambujeiros, que apenas serviam para dar sombra e para pouso das muitas aves que por ali paravam, constituindo a grande tentação dos rapazes, que armavam ratoeiras junto aos combros para as apanhar, nomeadamente trigueirões, cotovias, pardais do mato, piscos, arvelas, pitinhas e tantos outras.
Quando chegava a época da caça, aquele caminho era muito frequentado pelos caçadores, pois nos seus combros, que se elevavam junto das irregulares bermas do velho trilho, habitavam com frequência coelhos e então os cães, com os seus estridentes latidos tudo faziam para os retirar dos seus civis e solarengas camadas, acabando por se verificar uma grande azáfama, com os animais nervosos correndo de um lado para o outro.
Os caçadores também logo de manhã partiam para os extensos campos de Cabanas em busca das perdizes, que por ali existiam em abundância, e no começo do inverno, a caça mais apetecível se tornava, devido às muitas espécies de migração que sempre aparecia naqueles ricos terrenos e a rapaziada escondia-se nos combros desse caminho, sempre na mira das perdizes para ver onde elas pousavam derreadas.
Corriam atrás delas e apanhavam-nas, e por vezes, até faziam melhores caçadas que os próprios caçadores, o que era sempre motivo de grande chacota.
A meio desse caminho empedrado que separava o Bico do casal, existia uma velha casa em ruínas, quase já não se percebendo que fora em tempos de alguém que ali morava, ou armazém agrícola.
O seu interior estava repleto de negras pedras, o que dava a entender serem das paredes que, com o tempo ali se foram amontoando, contudo o arvoredo crescera desmedidamente dentro do velho edifício, mal se distinguindo já, as portas e as janelas, contudo, mesmo assim aquele casarão em adiantadíssimo estado de degradação, bem servia para habitat de uma família de raposas, que, pela calada da noite saía do seu esconderijo em busca de alimento e era o que não lhes faltava, porque as terras de Cabanas eram férteis na criação de outros animais roedores e não só, contudo os caçadores sabedores que as raposas paravam por ali, faziam-lhes de quando em quando esperas, no sentido de as matar, para poderem exibir esse precioso e valioso troféu, aproveitando-lhes a pele e nada mais.
Os empregados do casal, para adquirirem os seus alimentos, obrigavam-se a passar por esses ruins caminhos para atingirem a aldeia de Torcena, onde se encontrava o reduzido comércio mas que tanto lhes valia, confrontando-se com todos estes aliciantes que o caminho lhes proporcionava, qual passeio vespertino a um lindo jardim, pois sempre colhiam azedas ou espargos e em certas alturas do ano, ao domingo, quando folgavam apanhavam caracóis para os seus particulares petiscos.
As mulheres eram mais apreciadoras dos frutos silvestres e enchiam a barriga com eles, pois assim, quase ficavam alimentadas, escusando de gastar os seus reduzidos farnéis, pois as amoras, os figos e os medronhos eram um excelente complemento de sua fraca alimentação e era isso que muitas das vezes as matinha aconchegadas durante o trabalho, que por norma se efectuava de sol a sol.
Quando atravessavam o ribeiro para atingirem a tenda do António da Rosa, ou a mercearia do Calmaria em Torcena, obrigavam-se a passar por cima das pedras que eram colocadas no leito do ribeiro, para se poder passar de um lado para o outro, mas muitas desequilibravam-se e obrigavam-se a molhar as botas só que isso não causava problemas, pois bem ao invés era sempre alvo de grande rizada por parte das que não tinham sido atingidas pela essa falta de destreza.
Pedras que por vezes desapareciam, nas enxurradas que quase sempre surgiam em dias de grandes chuvadas e que de novo eram ali colocadas, porque o ribeiro portava sempre muita água.
Mal sabiam aqueles seres derreados pelo duro trabalho quotidiano, que naquele local, seis séculos antes, fora o posto de trabalho de muita gente, pois era precisamente ali, naquela passagem do ribeiro, que nesse tempo se encontrava um dos muitos engenhos de fabrico de pólvoras, e que tantas explosões assistiram, matando gente que se obrigava a servir os seus patrões, como que escravos se tratassem metidos num degredo imundo e verdadeiramente perigoso.
Só muito mais tarde, precisamente em 1729, é que os engenhos de fabrico de pólvoras foram retirados das margens do ribeiro, porque o rei D. João V, mandara vir da Suiça um técnico de fabrico de pólvoras, precisamente António Cremer, para criar definitivamente a Real Fábrica da Pólvora de Barcarena que acabaria por funcionar até finais dos anos oitenta do século XX.
As mulheres nada dessas histórias sabiam, pois o seu rude trabalho, quase se comparava ao que ali se registara séculos antes, só que enquanto os outros morriam frequentemente atingidos pelas violentas explosões, as macanitas, morriam sim, mas devido aos maus tratos que levavam naquela vida dura de trabalho e da miséria que passavam por se alimentarem mal e também devido à dureza do serviço, levando-as a contrair tuberculose e acabando, igualmente, por encontrarem a morte.
Felizmente nem todas foram alvo dessa enfermidade, e hoje muitas ainda sentem uma grande felicidade, regendo-se, felizmente, por um estatuto social bem diferente, lembrando ainda com saudade o trilho que as levava do Bico ao casal de Cabanas, onde parecia que tudo havia, desde a alegria, à diversão, não faltando o natural alimento.
Hoje esse caminho desaparecera por completo, devido à grande expansão urbanística que atingira aquela área, os trigais ondulados desapareceram, o seu verde viço deixou de se ver, as perdizes, os coelhos e as raposas extinguiram-se por completo e o velho trilho apenas é recordado pelos saudosistas.
É lembrado por essa gente de trabalho, que endurecera os seus calejados pés e mãos ao atravessá-lo e ao desbravá-lo por vezes, onde nas suas margens tanta vez se acostaram para descansar um pouco, ou ver os caçadores no seu giro de caça, atentos ao voar da passarada, que era, sem sombra de dúvidas, um aliciante enorme para a juventude.
Jovens que ocupavam os seus tempos livres em busca das enguias e dos barbos que abundavam mesmo junto a esses seixos e pedras de passagem no ribeiro e que, também constituíam agradáveis e profícuas refeições, sentindo hoje uma grande felicidade ao recordarem esses tempos que foram sem dúvida muito difíceis, mas consolados por esses anos já se terem passado.
Hoje a vida é completamente diferente, mas naquele tempo era mais pura, mais salutar, sobretudo quando se encontravam no seio da natureza, pródiga, saudável, bravia mas sem sombra de dúvidas bem mais trabalhosa e produtiva e as pedras irregulares do velho trilho que os levava a Cabanas e que lhes deixara marcas irreparáveis, hoje apenas é lembrado porque foi nele que muita das vezes saciaram a fome, já que outra comida não havia, ou era muito escassa.
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