O CASAL “MIRA”
E O APOIO SOCIAL E HUMANO QUE DAVA AOS MAIS NECESSITADOS
Tercena conheceu nos anos quarenta e cinquenta, uma família que ficou marcada na história desta terra como uma das mais sociais e humanas que por Tercena passou.
Porfírio Simões e Maria Francisca, eram naturais da região de Sines e vieram para Tercena muito novos, precisamente nos primeiros anos da década de quarenta.
Ela tinha servido durante muito tempo em casas de Lisboa, naquele tempo, mulheres que trabalhavam como criadas, viviam debaixo do mesmo tecto que os seus patrões, indo à sua terra Natal de tempos a tempos, pois eram como que escravas das famílias mais abastadas, contudo como a vida estava má e nas suas terras de origem ganhavam muito pouco, estas raparigas sem estudos, muitas até sem saberem ler, obrigavam-se a servir e passar por estas aventuras.
Conhecemos muitas que até eram abusadas pelos seus patrões, e pobres, de condição baixa, sujeitavam-se a isso, apenas para poderem usufruir de um pouco de carinho, uma melhor alimentação, já que a fraca jorna que lhes era atribuída ao final do mês, e muitas até só no final do ano, era uma mais valia importantíssima para delinearem o seu futuro.
A Maria Francisca, vulgarmente conhecida pela “Mira” trabalhou em Lisboa em diversas casas, e por este processo, logo que viu chegar a oportunidade de se soltar desta vida, acompanhou o seu marido, o Porfírio Simões, também alcunhado pelo “Mira” numa migração vulgar, em busca de melhores dias junto da capital portuguesa, acabando por se radicarem em Tercena.
Ela era muito espirituosa e mais tarde, quando lhe ofereciam sopa para comer respondia altiva e com um sorriso muito especial no rosto.
“Sopa, farta de ser sopeira fiquei eu quando trabalhava em casa das minhas patroas”.
Ele, atraído pelo trabalho quase garantido da Fábrica da Pólvora e ela, deixando as suas antigas patroas, partiram para uma nova aventura, deixando os seus familiares e o seu torrão natal.
A II Guerra Mundial estava instalada no seio da Europa, e a guerra civil de Espanha matava a esmo em terras de “nuestros irmanos” e estes dois terríveis acontecimentos na Europa, obrigavam que a Fábrica Militar de Barcarena, não parasse de noite e dia no fabrico de material bélico para os abastecer, porque Salazar não dormia, esperto não participou nestes conflitos, mantendo neutralidade apenas para poder facturar as muitas munições e explosivos que fabricava em Barcarena.
Foram pais de três filhos, a Alda, a Manuela e o Álvaro e foram morar numas casas pertencentes ao Filinto Silva e por ali se deixaram ficar durante muito tempo, pois este proprietário, como era empregado superior na Fábrica da Pólvora, arranjou-lhe trabalho naquela unidade fabril.
Ele, tal qual se previa, colocou-se radiante na fábrica como servente e ela ficou-se pelos seus trabalhos domésticos, uma vez que, com três filhos pequenos para criar, tinha muito com que se entreter.
Tornou-se um casal muito popular por serem muito prestáveis, pois ela a todos acudia e mesmo com escassos recursos, valia a toda a gente, enquanto ele não lhe ficava nada atrás, pois sempre que alguém lhe solicitava os seus préstimos, acorria de imediato sem olhar a recompensas, embora por vezes recebesse compensações, especialmente quando era chamado para despejar fossas, enterrar animais domésticos que morriam, ou para vestir defuntos, tarefa que tanto ele, como ela se prestavam com a maior das simplicidades, recebendo depois roupas daquele que faleciam, homem ou mulher e logo no dia a seguir usavam essas mesmas vestes sem possuírem quaisquer dúvidas ou receios.
Mas a família “Mira” ficou caracterizada pelo facto de ser muito humana, no entanto não se julgue que vivesse desafogadamente, pois bem ao invés, ele com um mísero ordenado de vinte e oito escudos por dia, mal chegava ao fim de semana para alimentar a família e por essas razões, ela, obrigava-se a lavar roupas, ou fazer quaisquer outros serviços, a quem lhe solicitasse.
Na época do Natal apareciam sempre em Tercena, grupos familiares que deambulavam miseravelmente pelo país apresentando um simples espectáculo de circo ao ar livre e então, por norma, faziam o seu trabalho quase junto à sua porta, precisamente na entrada da Travessa 5 de Outubro que comunica com o chafariz e tanque das lavadeiras a caminho do lugar do Bico.
Era aí que essa gente pousava, sem consentimento de ninguém, mas também, verdade se diga, que nenhum vizinho reclamava, por saberem que se tratava de gente muito pobre que daquela forma tentava ganhar a vida e era precisamente a “Mira” que ao ver, por vezes, crianças pequenas, mal vestidas, passando fome e frio com roupas de todo o ano, que as levava para sua casa, lhes dava de comer e vestindo-as com trapos velhos de seus filhos, mas muito melhores que aqueles que as crianças usavam e isso era uma acção social que, embora na época ninguém reparasse, deixava-a bastante consolada, porque custava-lhe muito ver aqueles desgraçados inocentes, que não tinham a culpa de terem nascido, passarem tão mal e por vezes tão pequenos.
Os pais lá apresentavam à noite, quando o tempo deixava, o seu modesto espectáculo, onde não faltava a cabra e o burro escanzelados, grande transporte dos parcos apetrechos do improvisado circo, o escadote e alguns sacos com as suas roupas encardidas e acabrunhadas com que se apresentavam ao público.
As pessoas de Tercena compareciam para ver, também diga-se em abono da verdade, que pouca animação havia na terra, pois raramente se faziam espectáculos na colectividade local e então servia para passarem um pouco de tempo e também, muitos com o sentido humano de ajudar aquela pobre família, que daquela forma corria o país de terra em terra.
A “Mira” facilitava a sua pobre casa a esta gente, dando-lhes comer, e por vezes até dormida, quando via que era desumano deixar aquela família aconchegar-se debaixo de um pano que armavam com duas varas, atrás da casa da D. Esperança ou do tanque onde as mulheres lavavam a roupa, para passarem a noite, sabedora de que chovia fortemente.
Era isto que mais ninguém se atrevia a fazer, sem conhecer as pessoas de lado nenhum, sujeita a criar problemas, mas esses medos eram coisas que não pairavam na mente daquele casal, considerado os pais dos desgraçados que gravitavam por esse país fora e de quando em quando apareciam em Tercena.
Também nas noites cálidas do verão, aparecia o homem do cinema com a sua máquina muito obsoleta, funcionando a acetileno, que projectava contra a parede alva da Margarida Pires, mesmo diante do café do Parreirinha, os filmes mudos que encantavam, especialmente a rapaziada, que, quando os viam chegar, andavam de um lado para o outro a transmitir às pessoas do lugar que tinha chegado o homem do cinema.
E a grande verdade é que o muro do “Lagarto” enchia-se de gente ávida por ver aquelas películas americanas muito antigas, como o “Charlot”, filmes de cowbois e tantas outros a preto e branco, sendo mesmo um grande entertenimento às vezes durante uma semana.
O “Mira” recebia aqueles homens como que fosse o “alcaide” da terra, o chefe de uma clã, ou comparável, dando-lhes de comer e era ele que no final da sessão passava com uma bandeja a recolher donativos para ofertar ao projectista que agradecia imenso retirando-lhe uma grande e importante tarefa.
O “Mira” adorava ver estes filmes, especialmente os de cowbois e quando as coisas corriam mal para o lado do herói da fita, gritava:
“Mira manca está com a tranca”, ou então quando se tratava de cenas mais amorosas, o “Mira derretia-se todo e gritava; “agora o rapaz morreu e a rapariga casa com o cavalo”.
Uma gargalhada fazia-se ouvir e a boa disposição reinava sempre nessas noites agradáveis, onde as pessoas acorriam por o cinema nessa época ser uma grande novidade, e Tercena raramente receber os ambulantes que, projectavam esses filmes na colectividade, já com som e com grandes artistas, só que era muito raro, aparecendo em média duas ou três vezes por ano.
Ainda neste tipo de distracção, na localidade, nos anos quarenta e cinquenta surgiam ainda pelo menos duas vezes por ano o ventrículo que portava sempre dois bonecos, o “Sebastião” e o “Ambrósio”, que se detestavam, nas histórias que o artista contava com entusiasmo e um certo humor.
E perguntava a ambos: “Ambrósio”, o mais mariquinhas, “o que queres ser quando fores grande ?”
E o boneco, através da voz de falsete do artista, respondia:
”Passarinho”. “Para quê ?”, insistia o artista.
“Para poder voar pelo espaço!”, respondia o boneco.
Depois virando-se para o outro, mais malandreco e refilão, questionava-o: “E tu Sebastião ?” respondendo logo de seguida “Espingarda!”.
O artista voltava a perguntar: “Para quê ?”
E o Sebastião com voz grossa de rufia, ripostava. “Para matar o passarinho. Eu não o gramo!”.
Era uma risota geral à porta da mercearia do Lagarto, no largo 1º Maio onde as pessoas, munidas de cadeiras que traziam de casa, ali se sentavam para ver este tipo de espectáculo, que tinha tanto de artístico, como de boa disposição.
Tratava-se de pessoas mais evoluídas, privilegiadas que já não se apresentavam tão miseravelmente como as do circo ou do cinema e assim viviam correndo as localidades vizinha com estes improvisados programas que distraíam o povo, já que este, por norma não tinha acesso aos grandes espectáculos que decorriam na capital, e nos grandes centros urbanos.
Mas a grande verdade e moral destas histórias era o espírito humano e social que reinava no seio das nossas gentes, pois acolhia estes personagens, alguns até com grandes recursos artísticos, com todo o carinho, sem desconfianças, ajudando-os na sua grande e árdua luta pela vida e por norma sempre olhando as crianças que se obrigavam a deambular junto de seus familiares, tanta vez passando fome, sem acesso à escolaridade e logo de pequeninos, obrigando-se a participarem no espectáculo fazendo números arriscados, como era o obrigatório número de contorcionismo que, sem exibirem grande qualidade, acabavam por ser aplaudidos por se perceber o grande esforço, a sua grande coragem que demonstravam e sobretudo tratarem-se de crianças de tenra idade, imbuídas já no espírito de ajudar os seus pais para que pudessem passar um pouco melhor.
A “Mira” era uma pessoa muito sensível e por isso ficou demarcada pelo seu grande espírito humano, altruísta e amiga de quem tinha dificuldades, esquecendo-se muita das vezes que ela pertencia a esse mesmo grupo social, já que na sua casa também tinha que acorrer a apoios extras por nutrir sérias dificuldades, pois o ordenado de seu marido não chegava para fazer face às despesas das cinco pessoas que compunham o seu agregado familiar, dando aquilo que tinha em casa aos outros por entender serem mais necessitados que ela, faltando, incrivelmente, por vezes aos seus próprios filhos.
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