O SALITRE PARA O FABRICO DE PÓLVORA
VINHA DOS ANDES, DO CHILE E OS
SEGREDOS DE FABRICO, DE ASSIS MAFRA
O fabrico de pólvora que desde o século XV, sempre se conheceu no vale da Ribeira de Barcarena, na sua margem esquerda, sempre utilizou o salitre para o fabrico do explosivo.
O salitre é um dos três ingredientes utilizados no fabrico de pólvora, já que o enxofre e o carvão são os outros componentes fundamentais do seu fabrico.
Sem ele a pólvora não pode existir, pois tratava-se de um material raro no nosso país, existindo poucas jazidas em Portugal, sendo necessário, nesse remoto tempo, na época em que reinava D. Afonso V, importá-lo da Índia, da Holanda ou ainda da Inglaterra.
Por cá apenas conhecíamos em Moura como produtor deste ingrediente vindo de jazidas, mas nesse tempo as nossas naus que partiam para o ultramar, no regresso vinham carregadas dele, para ser utilizado pelas fábricas de pólvora, pois esse nitrato de sódio era o elemento fundamental do fabrico do explosivo.
Os engenhos de fabrico de pólvora existentes à beira da ribeira de Barcarena, utilizavam-no de forma pouco recomendada, daí que as explosões fossem quase contínuas, provocando a morte a muitos trabalhadores, na maioria gente de baixa condição social e ainda muita das vezes, homens condenados à morte que para ali eram arrastados por ordem dos monarcas.
Daí, a pensar nesta mortandade, para que a mesma fosse diminuída, D. João V no seu reinado mandou vir da Suiça António Cremer, um técnico especializado na construção de fábricas de pólvora e tudo melhorou consideravelmente em Barcarena.
Com a nova tecnologia implantada, máquinas mais seguras movidas hidricamente a explosão passou a ser esquecida, porque as dosagens de nitrato eram as necessárias, bem mais equivalentes.
Também é verdade que as novas técnicas de extracção e preparação do salitre melhoravam consideravelmente a sua qualidade, passando a ser importado de outros países que despontavam no comércio deste produto e Portugal passou a ser comprado em países da América do Sul como, Brasil e Chile, muito especialmente proveniente das grandes jazidas naturais existentes nos Andes.
Para o fabrico de pólvora o salitre em Barcarena tinha de passar por um tratamento especial a que se dava o nome de Refinar, depois cristalizar, seguindo a sua lavagem e extracção de lixos, seguia para o enxugo e só depois era utilizado para o fabrico da pólvora.
Este trabalho só começou a ser feito na casa do Salitre da Fábrica de Barcarena por volta do século XIX, mas antes, vinha totalmente das fábricas de Alcântara, que depois de tratado, era transportado para Barcarena.
Em Barcarena a oficina de tratamento de salitre começou a funcionar num amplo edifício à beira da estrada e no seu espaço foram construídos quatro fornos, alimentados pelo exterior, tabuleiros extensos para a secagem e celhas de lavagem que portavam cerca de 500 litros de água.
Esta secção estava distante do fabrico de pólvora, separada pelo ribeiro de Barcarena e por frondoso arvoredo que envolvia a fábrica, procurando não haver contactos para evitar as explosões.
Também o carvão, outro dos ingrediente que compunham o fabrico da pólvora negra, a lenha que vinha da região de Almeirim, era carbonizada em Barcarena, numa secção distanciada das oficinas de transformação do explosivo, igualmente protegida para evitar explosões, o que francamente e também por haver nisso algum cuidado, nunca acontecera, embora se tivessem registado diversas ao longo do século XX, mesmo já com outros cuidados no fabrico da pólvora.
A partir da entrada do técnico suíço, esses trágicos acidentes reduziram bastante, no entanto duas explosões quase seguidas, 17 de Agosto e 26 de Outubro do ano de 1805, causaram um certo receio no respeitante à segurança que era apontada, mas na verdade, tanto aquelas, como todas as outras que se seguiram até ao encerramento da fábrica em 1988, foram motivadas por pura negligência dos seus operários.
Depois da fábrica ser vendida a um grupo empresarial belga em 1951, que denominou a Fábrica de “Companhia de Pólvoras e Munições de Barcarena”, o fabrico de pólvora tinha tendências a terminar para ser trocada por uma unidade de fabrico de pólvora branca, no entanto muitas dificuldades se cruzaram na empresa e também alguma negligência administrativa e empresarial fizeram com que isso nunca se verificasse.
Nesse tempo o salitre vinha de fábricas existentes em Santa Iria de Azóia, onde preparavam grande parte do que se consumia em Barcarena, pese embora a secção criada nesta unidade fabril vinda dos tempos de António Cremer, embora com significativas modificações, continuasse a fazer o seu trabalho, só que a produção conseguida era insuficiente para o consumo.
Era chefe desta secção o operário António Nogueira, mais conhecido pelo “António Louro” e nela trabalhava ainda um outro operário vulgarmente tratado por “Saricoté” que vivia na Venda Seca.
Nesse tempo, anos cinquenta, os mestres gerais foram, João Gonçalves, conhecido pelo “Piriquito” e por este se ter reformado foi trocado pelo José Valente, que eram comandados pelo director do fabrico de pólvoras, o engenheiro Boyen, também de nacionalidade belga, aposta do director Armand Simon Jonet.
Os mestres interferiam na laboração do pessoal e no recrutamento dos mesmos para as respectiva oficinas de serviço, mas no fabrico, apesar do engenheiro ditar as directrizes de fabricação, obrigava-se a respeitar solenemente, desde o princípio do século passado, até quase falecer, as regras técnicas de fabrico ditadas pelo Mestre Instrutor, Francisco Assis Mafra, um portento no fabrico daquele explosivo, que acabaria por falecer uma semana depois de ter largado o trabalho após quase sessenta anos de ininterrupta laboração ao serviço do fabrico de pólvora negra, por imposição da administração.
Era um homem bastante sabedor do fabrico de pólvoras e não se acredite que este explosivo para armas de caça, minas e pedreiras, aparecia só por incluir os três ingredientes, carvão, enxofre e salitre, havia lago mais que teimosamente ficou sempre dentro do cérebro daquele homem, que nunca foi desvendado, razão pela qual se obrigou a trabalhar quase sessenta anos, numa tentativa desesperada de um dia poder desvendar e transmitir a outros os tais segredos que ele tanto anunciava existirem, mas nunca terem sido divulgados, pois dizia sempre aos mais renitente, “meus amigos, o segredo é a alma do negócio” e assim, aquilo que de facto existia de secreto e que transformava o produto e o dotava de grande qualidade, residirá nas entranhas da terra, do cemitério de Barcarena onde um dia fora sepultado.
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