OS ARTISTAS AMBULANTES FILHOS DA POUCA SORTE
Hoje há um mundo de diversões e formas de passar o tempo, que não existiam no passado.
A televisão, os computadores, os telemóveis, enfim, não falando das muitas salas de espectáculos, cinemas, discotecas entre muitas outras coisas, que em tempos mais recuados, mais propriamente nos anos quarenta do século passado, até finais da década seguinte, eram novidades puramente desconhecidas do Zé Povinho.
O povo metido nas suas aldeias, nos seus lugares, vivia do trabalho, e no intervalo recorria ás tabernas, às colectividades e aí entretinham-se com as actividades possíveis, normalmente jogando às cartas, dominó, ou à laranjinha, enquanto outros passavam os seus tempos livres aprendendo música e fazendo parte dos grupos de teatro.
As crianças, essas, depois do cumprimento diário escolar, pouco ou mesmo nada possuíam para passar os seus tempos livres, ficando em casa, ou jogando à porta de sua habitação à malha, à “macaca” e outros jogos que conheciam.
Outros faziam brinquedos com arame ferrugento, utilizavam as latas de conserva depois de vazias, imitando camionetas, carroças, porque nem dinheiro havia para se adquirir brinquedos modestos, quanto mais daqueles que se exibiam nas montras dos grandes estabelecimentos da capital, porque na terra, nada disso havia, a não ser coisas simples e baratas, praticamente sem terem algum interesse.
No campo da diversão, então não havia mesmo nada, a não ser alguns espectáculos de quando em quando promovidos pelas colectividades e sempre à base das suas actividades, coisas que, muitas das vezes as crianças não entendiam nem apreciavam, acabando no colo de suas mães adormecidas, enquanto não acabasse a função.
Mas havia épocas do ano em que a rapaziada mais nova se alegrava, galvanizava-se mesmo ao saber que tinha chegado à sua terra naquele dia, o homem do cinema.
O animatógrafo, como se dizia naquela época, chegava ao lugar depois do almoço, escolhia o local para projectar os seus filmes à noite e a rapaziada ficava louca, não saindo daquele lugar escolhido atenta a todos os movimentos do grande animador que, corria o pais de lés a lés, para projectar os seus filmes, forma de ganhar a sua vida.
Aparecia de tempos a tempos, para não “escaldar” a sua clientela, embora sabedor de que as pessoas gostavam de ver os seus filmes, pois por norma eram alugados por uma temporada e enquanto não passassem nas localidades mais perto da sua habitação, não voltava com novos, pois era cíclico e então de mês a mês aparecia, e também em função da clientela, se era ou não fértil, se valia ou não a pena voltar célere com novos programas.
O cinema estava ainda pouco divulgado, pois só na capital é que já existiam casas próprias para os exibir e então eles corriam os lugares do país com as suas antiquadas máquinas, que funcionavam a carboneto, luz que fazia projectar a imagem na parede.
Em Tercena esses ambulantes quando apareciam iam projectar os seus filmes junto à taberna do António da Rosa, na parede da casa da Margarida Pires, pois como estava sempre caiada de fresco, por o seu proprietário ser pedreiro e gostar de mostrar o exterior do edifício alindado, era ali o sítio ideal para a projecção e depois ficava totalmente resguardado do lado direito com o edifício, já que no esquerdo, passava a estrada, havendo o muro do quintal do “Lagarto”, merceeiro conhecido na terra, que fazia de assento para os mais idosos já que na estrada raramente passava uma viatura àquela hora da noite.
Os filmes eram mudos e por norma eram de “cowbois”, passados no “Farweste”, o que a rapaziada adorava ver.
A certa altura, o projectista, pedia sempre a uma pessoa que ele já conhecia de anteriores sessões, para passar a bandeja pelas pessoas com a finalidade de angariar alguns fundos e por norma era o “Mira” figura típica da terra, que morava ali perto e acolhia sempre toda esta gente infeliz que desta forma governava a sua vida, que ia junto das pessoas a pedir qualquer coisa.
Eram sempre uns cobres que caiam na bandeja, mas ao cabo lá conseguia arranjar dinheiro para a sopa, ou para mais qualquer coisa, porque afinal, riqueza nunca ninguém conseguira arranjar com esta forma de vida, porque o povo não dispunha de dinheiro e dava apenas um, dois ou o máximo, cinco tostões, pois mais não tinha para poder desembolsar.
Contudo, eram estas migalhas que alegravam o pobre homem, que prometia, no final da sessão, voltar breve com novos e empolgantes filmes, por norma a grande série do Cassidi, um “cowboy” famoso que a rapaziada gostava de ver.
Durante a sessão, o “Mira” fazia os comentários, pois adorava estes momentos e como era bastante conhecido no lugar, era imediatamente eleito pelos presentes, para fazer os seus cómicos comentários, àquilo que estava assistindo e por vezes apoiado pelo projectista, que assim o deixava exibir-se, sabedor de que as pessoas tinham-no como um ídolo naquela matéria.
Por vezes, quando as coisas não corriam bem, ou ele não entendia o que estava a ver, gritava “Mira manca está “ca” tranca”.
Toda a gente ria e rematava sempre, “agora a rapariga foge, e casa com o cavalo”, o que dava origem a grandes gargalhadas.
Passados tempos, intervalando com o animatógrafo, aparecia a família que se dedicava de forma modesta ao circo, quais filhos da pouca sorte que vagueavam de terra em terra, pois por norma, os pais faziam números mais simples, como de palhaços, enquanto que eles se dedicavam mais à parte gímnica, com a rapariga a exibir-se com exercícios mais rigorosos exibindo o seu corpo enfezado, mas ágil, contudo a cabra e o burro, sempre muito escanzelados por tanta fome terem passado na sua vida, também se exibiam de forma caricata, para poderem causar o riso, com o burro domesticado a zurrar, quando o dono lhe solicitava e a cabra a ter de subir com dificuldade os degraus do escadote, pois o animal fazia toda aquela ginástica difícil sempre a troco de qualquer coisa de comer, o que era satisfeito, logo que terminado aquilo que se desejava.
Era uma família muito modesta, que dormia em tendas de trapo, já muito usadas, valendo muitas das vezes as pessoas que, reparando em tão grande miséria lhes dava de comer e sobretudo apoiava as crianças com roupas já usadas, que desde sempre, raramente iam à escola, obrigando-se a acompanhar seus pais naquela triste vida, ficarem a vida inteira analfabetas e terem de fazer alguma coisa de útil, para poderem requerer o estatuto de artistas da modesta companhia.
Por norma era a família do “Mira” que recolhia as crianças na sua modesta casa, pois o circo mantinha-se por vários dias e à noite, como as pessoas nada tinham com que se entreter, depois do jantar, iam até ao local onde se exibiam, levando uma cadeira, ou um banco e repartiam sempre com aquela gente, mais por ajudar a pobre família do que recompensá-la pelo que assistiam.
Era assim que as pessoas passavam as noites, por norma de verão, pois nada havia para entretenimento, e as colectividades nem sempre tinham festas e era nestes intervalos, por vezes bastante grandes, que as pessoas se divertiam, mas também aplicando a sua vertente humana, porque se tratava de gente, apesar de pobre, séria, pois não havia roubos, nem desacatos e assim calcorreavam de semana a semana por esse país fora, sempre em locais onde a pobreza imperava e como tal estes espectáculos modestos eram aceites.
Nas grandes vilas e cidades, eles não se atreviam a entrar, porque por norma ninguém os aceitava e inclusivamente as autoridades repudiavam-nos e como tal, eles, sabedores dessas contrariedades, apareciam só nos pequenos lugares onde não existia autoridade e então exibiam-se à vontade, porque sabiam que tinham sucesso.
Outras vezes surgiam em Tercena os ventrículos, que de forma mais remediada se apresentavam com os seus bonecos faladores, tendo sido famosos o “Sebastião” e o “Ambrósio”, que a técnica do artista, parecia pô-los a dialogar com ele.
Ele fazia ambas as vozes e o público mais jovem não percebia, pensando que eram de facto os bonecos que emitiam sons.
O “Sebastião” era o mais rufia e o “Ambrósio” o mais recatado e o artista perguntava ao “Ambrósio” o que mais gostaria de ser na sua vida.
E ele respondia, “Eu ?... passarinho!...” e depois virando-se para o “Sebastião”, tido como refilão e mau, este respondia prontamente, Espingarda!...”
O artista verificando tratar-se de uma resposta desenquadrada, questionava-o de imediato.
“Para que querias ser tu espingarda, Sebastião?”
E o boneco respondia de imediato. “Para matar o passarinho. Eu não o gramo!”
As crianças riam, porque bem sabiam que ambos os bonecos não se davam bem, pois havia sempre algo que os deixava zangados e contrariados.
Estes ventrículos, que tinham o condão de emitir as palavras sem que o público percebesse, eram bastante queridos em Tercena, mas viviam também das esmolas que o público lhes dava, só que muitos espectadores, ao aperceberem-se que alguém vinha pedir dinheiro, desapareciam só para nada darem, pois também é verdade que alguns por vezes nada tinham consigo, senão apenas a vontade de ver parte do espectáculo que era sempre efectuado ao ar livre, no largo do Lagarto, mesmo à porta da Emília do “Chorrinha”.
Eram estes os grandes espectáculos que se registavam em Tercena, nos anos quarenta e parte da década seguinte, por isso, hoje, quando se recordam estas histórias, os mais novos, habituados a tudo, às maravilhas que lhes surgem através da televisão e dos grandes circos que pelo Natal se apresentam no país, quase não acreditam, porque não imaginam, o quanto se passava nesse tempo, tanto para os que tentavam por estes processos ganhar a vida, ou mesmo sobreviverem, como para os que assistiam, pois mal tinham dinheiro para a modesta refeição que se obrigavam a fazer diariamente, mesmo possuidores de trabalho certo no seu dia a dia.
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