Fernando Silva
O Carnaval e o
“Enterro do Bacalhau”
O Carnaval é, apesar de tudo, ainda uma das festas mais festejadas no nosso país e em Tercena ele sempre mereceu uma especial atenção por parte do seu povo, que logo bem cedo iniciava a folia, entrando depois numa fase mais séria de meditação e recolha por parte do povo, até se atingir a Semana Santa, com as festividades religiosas pascais.
O Carnaval é um período de festas regidas pelo ano lunar que tem suas origens na antiguidade e recuperadas pelo Cristianismo que começava no dia de Reis “Epifania” e terminava na “4ª feira de cinzas”, às vésperas da Quaresma.
O período do Carnaval era marcado pelo “adeus à carne”, ou “Carne nada vale”, dando origem ao termo Carnaval.
Durante o período dedicado ao Carnaval havia uma grande concentração de festejos populares, pois cada cidade brincava a seu modo de acordo com os seus costumes tal qual acontecia em Tercena.
O Carnaval moderno feito de efeitos e fantasias, é produto da sociedade vitoriana do século XIX, onde as cidades de Veneza e Paris foram os grandes modelos exportadores da festa carnavalesca para o mundo inteiro.
Cidades, como Nice, Nova Orleans, Toronto, Rio de Janeiro, inspiraram-se no Carnaval francês para implantarem as suas novas festas carnavalescas.
Actualmente o Carnaval do Rio de Janeiro no Brasil, é considerado um dos mais importantes desfiles do mundo, mas em Portugal existe uma grande tradição carnavalesca, como ainda hoje acontece com as festas levadas a cabo em Podence, Ovar, Loulé, Sesimbra, Rio Maior, Torres Vedras e Sines, com um destaque muito especial para o de Torres Vedras, por ser o mais antigo e reconhecido como o “Carnaval mais português de Portugal”, que se mantém popular e fiel à tradição, rejeitando o samba e outros estrangeirismos juntamente com o Carnaval de Canas de Senhorim com perto de 400 anos e tradições únicas, como os “Pizões”, as ”Paneladas”, “Queima do Entrudo”, “Despiques” e outras coisas.
Entre uma época e a outra, existiam estes dias eufóricos em que as pessoas se soltavam, tomavam um ar libertino, feliz, de características lúdicas e etnográficas, dando graças às novas colheitas, bendizendo a fertilidade e imediatamente atingindo o auge, começando bem cedo, com comemorações efusivas ao ser anunciado o dia de S. Vicente.
As pessoas davam imediatamente, largas à sua imaginação e ao seu ávido desejo de brincar, começando a festejar o Entrudo, com empulhações populares, “No dia de S. Vicente levas o cagalhão no dente”, entre muitas outros ditos que a ninguém ofendiam.
Os mais foliões começavam também a juntar nos seus quintais, montes de coisas velhas, cacos e latas para atirar pela calada da noite à porta de pessoas conhecidas e amigas, sinal bem evidente das diabruras que iriam suceder-se ininterruptamente até ao dia em que se efectuava o “Enterro do Bacalhau” e finalizavam oficialmente a época grotesca do Carnaval.
A colectividade tercenense preparava os seus festejos e o Teatro era a principal atracção, pois representava-se sempre uma comédia e um acto de variedades onde se criticava, as pessoas do lugar e isso era sempre esperado com grande expectativa, pois se havia quem não gostasse, outros adoravam que falassem de si e até ficavam zangados se porventura em algum ano, nada comentassem de sua vida.
Os bailes sucediam-se desde o sábado magro, e na semana do Carnaval, iniciavam-se no sábado gordo depois da récita e só terminavam na 4ª feira de cinzas, depois do “Enterro do Bacalhau”.
No domingo gordo, as pessoas juntavam-se logo a seguir ao almoço na sede da colectividade e preparavam o grande desfile carnavalesco, que começava sempre na Estação de caminho de ferro, onde se ia esperar os reis que viajavam sempre de comboio, entrando na estação de Queluz e eram esperados na Estação de Barcarena, com grande pompa e circunstância, levados depois num grandioso cortejo, organizado e preparado pelo Costa Ramos que era o grande animador desta festa carnavalesca.
Uma camioneta adornada, com trono, esperava suas majestades, que depois, em andamento lento, percorria todas as artérias de Tercena até chegar à colectividade, com os reis sempre efusivamente aclamados, com serpentinas, papelinhos e os famosos saquinhos, cheios de serradura, que se atiravam uns aos outros.
Depois do baile da tarde, seguia-se a sua continuação à noite e na segunda feira à noite, tinha lugar o baile trapalhão, onde as máscaras apareciam de forma grotescas, de cara tapada, que vulgarmente se chamava “mastronços” e antes de entrarem no salão, tinham de a retirar no gabinete da direcção, para serem definitivamente identificados.
Nunca se detectara qualquer outra situação, pois toda a gente queria apenas brincar e raramente utilizava o Carnaval para outros fins.
Na terça feira à tarde, havia de novo corso, mas já com os reis de Carnaval a saírem da colectividade para darem mais uma volta pela parte do lugar ainda não visitada, recolhendo ao salão para toda a gente se divertir no alegre bailarico.
O baile da noite, apesar de cansativo, já era feito com enorme saudade, pois adivinhava-se o fim da folia e isso era desmoralizador, principalmente para os jovens que adoravam o Carnaval e alguns tinham deixado em mãos atrevidos namoricos, pois contrariamente à práticas normais, só sentiam coragem de desabrochar romanticamente nestas alturas do ano e era sempre nesse baile que esperavam suas desejadas respostas, se sim ou não eram correspondidos.
No dia seguinte, logo após o almoço, o Farinha, que era o fogueteiro da terra, preparava o boneco que iria animar o “Enterro do Bacalhau”, com roupas oferecidas e bonitas, enchendo-o de palha, muitas bombas e rabichas, o que galvanizava o povo que, depois das nove horas se juntava à porta da colectividade para com ele, correr de novo o lugar, para finalmente ser queimado nos terrenos ao lado da colectividade.
A Orquestra de Tercena acompanhava o cortejo, tocando músicas adequadas e depois, no final havia sempre uma hora de baile, para satisfazer os mais inconformados com o fim do Carnaval e começava-se logo a pensar na festa do ano a seguir.
Mas o “Enterro do Bacalhau” tinha características muito especiais, já que em outros lugares da freguesia, como em Leceia, o boneco era colocado sobre um burro, que corria os caminhos do lugar e depois, mesmo lá no alto, no famosos moinho do Outeiro, debruçado sobre Barcarena, os mais foliões e atrevidos, soltavam quadras, ditas em voz bem alta, por forma a que as pessoas da sede da freguesia as ouvisse distintamente.
E então, simulavam matar o burro, e oferecendo as partes esquartejadas ao povo de Barcarena, dedicando-lhes quadras ou simplesmente versos, às pessoas mais influentes e conhecidas, como por exemplo:
“A tripa cagueira é para o Miguel Nogueira”
“A coisa do Bicho, vai inteirinha para o Cochicho”
” A orelha vai servir e bem o Zé Azelha”,
“Da pata esquerda, o artelho, é para o Zé Vermelho”,
e assim sucessivamente, até, simbolicamente o animal ficar reduzido a nada, só que o burro era intocável, pois apenas queimavam o boneco que andara sobre o seu lombo, pois o animal teria de seguir a sua vida.
Era nesta época extraordinária que se aproveitava para os de Leceia criticarem, as pessoas conhecidas de Barcarena e também do lugar, pois davam início à função soprando nos búzios que ecoavam pela montanha a baixo, obrigando a que todos tomassem redobrada atenção, porque sabiam que iriam escutar coisas inconvenientes, insultuosas e sobretudo aqueles que tinham pecados graves, conflitos, como questões de infidelidade, problemas nos empregos, questões relacionadas com os bombeiros ou outras instituições, tomavam melhor atenção, porque sabiam de certeza que iriam escutar quadras alusivas às suas irreverências.
Em Tercena, essas críticas eram divulgadas apenas durante a representação teatral, mas houve um ano em que o Grupo Recreativo de Tercena se excedeu, com uma arrojada organização.
Em 1961, Fernando Silva concebeu um grande cortejo carnavalesco, com um enorme número de carros alegóricos, na sua maioria carroças, automóveis adaptados e outras viaturas, que causou sensação, chamando a Tercena muitos forasteiros nesse ano.
Os carros foram ornamentados na sede do Grupo Recreativo de Tercena e outros mais sofisticados foram montados num grande armazém que havia no Bico, pertencente à Fabrica da Pólvora e com a devida autorização.
Foi um grande espectáculo, onde praticamente toda a população se mobilizou naquele sentido e de facto causou um enorme êxito, porque a propaganda foi bem feita e vieram até Tercena, algumas centenas de pessoas atraídas pela fama do seu Carnaval.
Foi pena nunca mais se ter organizado uma iniciativa idêntica, mas na realidade foi um Carnaval muito cansativo, dispendioso, e como tal, difícil de encontrar continuidade e isto por não haver naquela altura qualquer apoio da Câmara Municipal ou da Junta de Freguesia, pois foi o GRT de parceria com os foliões, que custeou todo o trabalho.
Falando um pouco destas tradições do passado, o “Enterro do Bacalhau”, constituía uma resposta vingativa ao “Enterro do Galo”, que se fazia em muitas outras localidades do país, pois por todo o lado, e com pequeníssimas diferenças, o “Enterro do Entrudo”, ou o nome que entendessem dar, já se organizava na 4ª feira de cinzas.
A tradição já vinha dos tempos memoriais de Cristo, com o “Enterro de Judas”, o discípulo infiel de Cristo e como tal, o seu enterro terá sido, uma verdadeira brincadeira de Carnaval, afinal por ter sido tão ingrato e injusto com Jesus.
Desde esses tempos que se simboliza esta paródia, depois do Carnaval e antes de se atingir a Páscoa, por muitos lados e depois de muitos séculos se terem passado, esta brincadeira tomou aspectos sérios, já que em muitos lugares até missa se realizava.
O “Enterro do Bacalhau”, ainda em épocas mais contemporâneas, simbolizava o “adeus à carne”, e escolhido o “fiel amigo”, acabando por rivalizar com os talhantes que assim se viam postos de lado.
Esta era uma brincadeira, onde o povo de associava sem se aborrecer, havendo mesmo uma enorme compreensão nestas paródias e então, como o poder organizativo era muito maior e massivo, juntavam-se as instituições militares locais, disponibilizando cavalos, cujos soldados portavam instrumentos de sopro, abrindo o cortejo, seguindo-se os réus, os carrascos, os juízes, advogados, as testemunhas e todos aqueles que simulavam, defender o bacalhau, que barafustavam em verso, contra os que lutavam pela carne e que tinham sido depostos.
Brincadeiras que constituam um grande espectáculo etnográfico, e que hoje se procura repor, mas com grande dificuldade e isto por as pessoas não encontrarem grande disposição devido à vida atribulada que levam.
Criavam um enorme bacalhau feito em cartão e havia sempre uma grande emoção com diálogos pré estudados entre marçanos, talhantes, criados, não faltando as carpideiras que gritavam desesperadamente e toda esta gente conspirava ao longo do percurso que avançava barulhentamente iluminado por archotes e ao som da música.
Chegados ao local do juízo final, o bacalhau era queimado, noutros locais enforcado e aqui derivava de lugar para lugar, pois se uns recriavam o enterro desta maneira, outros arranjavam mesmo um caixão, onde levavam dentro um boneco, com figuras mascaradas de padre, bispo e outras personagens da igreja que junto ao cadafalso, declamavam poemas alusivos às figuras mais importantes da terra, tecendo criticas, algumas até bem duras, mas jamais divulgando o nome dos seus personagens, só que as pessoas sabiam a quem se referiam e a chacota era enorme, ao mesmo tempo que outros repudiavam.
Afinal estas pessoas, alvo de crítica, pensavam que os seus casos tinham sido bem guardados e afinal eram declarados em plena praça pública, o que os deixava deveras acabrunhados, mas remetendo-se ao silêncio, pois ninguém dava parte fraca e como tal não motivava nenhuma zanga.
Todas estas brincadeiras, valiosas tradições do nosso povo de antanho, não passam hoje de recordações do passado, porque ninguém se atreve a organizá-las, ou por falta de tempo, de disposição, ou receio de represálias, mas o que está mesmo provado é que as modificações políticas do nosso país, obrigaram a que tudo isto fosse remetido a um silêncio sepulcral, que nos entristece, primeiro por se acabar com coisas que muito significado tinham pelo facto de serem remotas e depois, pela estúpida incompreensão das pessoas não admitirem ser parodiadas, mesmo sabedoras de que foram verdadeiros réus, que seus casos foram divulgados e levados ao conhecimento público.
As reacções hoje a todas estas brincadeiras, são diversas e podem até levar a grandes conflitos, ferir susceptibilidades e então para se evitar desavenças, acabam por ficar apenas na ideia dos mais idosos e lamentar-se tristemente, o quanto é diferente o Carnaval dos nossos dias.
O Carnaval agora limita-se ao cortejo de crianças das escolas, bailes nas colectividades e algumas iniciativas de maior monta, como os corsos fechados e de carácter comercial, com as máscaras cada vez a uma maior tendência ao nudismo, ao erotismo e sem aquele valor grotesco, humano e fantasioso como antes.
Quanto ao “Enterro do Bacalhau”, noutros locais, também conhecido pelo “Enterro do Galo”, “Enterro do Entrudo”, todos eles mantém a o mesmo significado, mas infelizmente marcado e adulterado em relação ao passado, devido ás mesmas razões, a falta de entendimento e estreita compreensão entre os seres humanos.
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