sábado, 26 de janeiro de 2013

À descoberta do Historial de Barcarena

SERÁ QUE VAMOS VOLTAR À LUTA E DITADURA
 DOS ANOS TRINTA DO SÉCULO PASSADO ?
   Barcarena sempre foi reconhecida como uma terra vanguardista, referência que já vem das primeiras décadas do século passado.
  A existência da Fábrica da Pólvora e os baixos ordenados que os seus operários auferiam, contribuíram bastante para que alguns funcionários se movimentassem em Barcarena no sentido de quererem dar melhor nível de vida à sua população.
   Também por outro lado existia um razoável número de pessoas que trabalhava na Casa da Moeda em Lisboa e noutros locais que igualmente conspiravam contra o Estado Novo, onde Salazar, depois de ter assumido a presidência do conselho passou a dispor de uma grande autoridade sobre o controlo do Estado o que desagradou bastante o povo português.
   Por um lado, quando Salazar assumiu a pasta de Ministro das Finanças em 1928, substituindo o barcarenense Sinel de Cordes, as pessoas pareciam gostar dele, na medida em que o país vinha a ser governado aos atropelos, com muita escaramuças, numa verdadeira anarquia, muito especialmente depois da I Guerra Mundial, onde os governos tombavam sucessivamente.
   Mas Barcarena apesar de ter todo esse movimento revolucionário tinha como filho da terra esse político, homem que acabaria mais tarde por ser também ministro de António Oliveira Salazar, igualmente mal sucedido, por quem quase todos que lutavam contra a ditadura do seu chefe, e líder detestavam no entanto, apesar dessa sua adversa posição, Sinel de Cordes terá retirado da prisão do Aljube dois comunistas barcarenenses, mas mesmo assim a aversão que havia jamais fora retirada, e mesmo depois de ser excluído do governo, por insistentes maus resultados na pasta das finanças, o povo barcarenense o considerou a ponto de ter sido retirado o nome que tinha na rua principal de Barcarena e trocado pelo esquerdista Felner Duarte, que, acabaria por gerar grande polémica na altura
     João Sinel de Cordes que viveu na Quinta do Jardim no Murganhal, era filho de Baltazar António Sinel de Cordes e de Maria Clementina Braamcamp Ludovice da Gama, foi Ministro das Finanças por três vezes após o movimento do 28 de Maio de 1926 durante a Ditadura Militar e durante a Ditadura Nacional, tendo negociado com a Sociedade das Nações, um empréstimo a Portugal, no valor de 12 milhões de libras esterlinas, para evitar a bancarrota, mas acabaria por deixar as Finanças Públicas da Ditadura Militar num estado deplorável, situação com que teve de se defrontar com o ministro que lhe sucedeu em 1928, precisamente, Salazar.
   Nessa altura o Estado Novo foi também rotulado de salazarismo, em referência a António de Oliveira Salazar, o seu fundador e líder tornando-se, nessa pasta, figura preponderante no governo da Ditadura Militar já em 1930, valeu-lhe o epíteto de "Ditador das Finanças", ascendendo a Presidente do Conselho de Ministros, ou seja primeiro-ministro, em Julho de 1932, posto que manteve até ao seu afastamento por doença em 1968.
   A designação “salazarismo” reflectia a circunstância do Estado Novo se ter centrado na figura do "Chefe" Salazar e ter sido muito marcado pelo seu estilo pessoal de governação.
   Quando Salazar tomou conta do Governo as pessoas pareciam gostar dele, na medida em que o país vinha a ser governado aos atropelos, com muita escaramuças, numa verdadeira anarquia, muito especialmente depois da I Guerra Mundial, onde os governos tombavam sucessivamente.
    Foi uma individualidade que brilhara nos seus estudos académicos e por isso tomado como uma figura importante em Coimbra onde estudara e se formara e como tal aconselhado para formar um Governo, no entanto na sua primeira chamada, ele propôs o que pretendia fazer e logo recebeu o não, pois fartos de ditadura estavam os portugueses, aquando prevalecia a monarquia no país.
   Salazar voltou à sua vida de docente, e pouco se importou em não formar governo, contudo o descalabro político continuava de tal ordem que outro remédio não houve senão chamar então definitivamente António de Oliveira Salazar e aceitar as suas condições.
   Nos primeiros tempos o povo sentiu-se feliz com o seu trabalho, pois as finanças melhoraram a vida dos portugueses terá sofrido boas e significativas alterações, mas a partir da década de trinta, o grande economista, apertou as suas doutrinas e tudo passou a ser mais complicado para a classe trabalhadora, pois começava a desenvolver-se uma política tendencial para as classes mais abastadas, ideia talvez errada do presidente, pois pensou ser por essa via, que o país mais progredia por ser esse abastado estrato social que mais poderia investir no nosso pais, e sem investimento nada poderia singrar, o que hoje paradoxalmente, os governos parecem não entender assim.
   O povo sentiu-se acorrentado, sem recursos e sem hipóteses de dar largas às suas apetências, e a notar que de facto em Portugal começava a haver dois grupos sociais, os ricos e os pobres, ideia que contrariava bastante as leis democráticas, o que Salazar desprezara sempre, pois era ele que mandava e nada mais crepitava na sua cabeça de ditador profundo.
  Foi então que em Barcarena, aliás como em outros locais do país, as pessoas começaram a insurgir-se contra estas contrariedades, que fugiam bastante daquilo que o povo vinha a ser acostumado e logo de início os prevaricadores começaram a receber grandes castigos, pois quem conspirasse contra o Estado Novo, era preso, torturado nas prisões, sendo famoso o presídio do Aljube, e depois o Tarrafal em Cabo Verde para os mais renitentes e agressivos, assim como Caxias recebia igualmente os que andavam fora das leis salazaristas.
    Em Barcarena os revoltados conspiravam constantemente contra as leis repressivas de Salazar que inibiam o seu povo, principalmente os estratos sociais mais baixos da população a viverem condicionados ao produto miserável do seu trabalho, os filhos a não poderem estudar porque era incomportável, pois só quem tinha esse direito eram os ricos, e então nada mais lhes restava que não fosse seguir a vida de seus progenitores, agarrados aos poucos serviços que apareciam nomeadamente na fábrica da pólvora ou no campo, dependendo fortemente dos seus biscates particulares e manutenção séria das hortas e capoeiras de animais que criavam com restos de comida, que eram a base de sua alimentação.
   O barcarenense Felner Duarte alistou-se às comunas que actuavam clandestinamente na capital e arredores pois preparavam constantemente intentonas para destronar o governo salazaristas, mas a actuação, nada de concreto alcançava, resultando quase sempre numa série de prisões porque a polícia astuta de Salazar actuava com eficácia e celeridade, não perdoava, aplicando castigos terríveis e por vezes sem grandes razões, pois prendia ao mais pequeno indício de prevaricação.
     Numa dessas muitas tentativas, três empregados da Fábrica da Pólvora, Felner Duarte, Júlio do Rego e Joaquim Silva entenderam colaborar e extorquiram da fábrica da pólvora de Barcarena uma grande quantidade de nitrato de potássio para com ele os entendidos na capital fabricarem bombas artesanais, colocando esse explosivo dentro das maçanetas que roubavam das portas de casa, que eram lançadas aqui e além, só que, acabaram por ser descobertos e se o principal titular foi desterrado para Timor onde viria a morrer atacado pelos japoneses que entretanto tinham atacado a ilha, o Júlio, desviara-se inteligentemente para África e o Joaquim da Silva conseguira escapar ao terror do presídio, devido à sagacidade de sua esposa que o escondeu dentro de um forno de cozer pão, fugindo assim aos sagazes homens da Pide.
   Mas Barcarena continuava a dar nas vistas, porque depois deste episódio que deixou o povo ainda mais revoltado, surgiram outros residentes a querer dar à sede de freguesia do concelho de Oeiras, dotações que muitas outras com maior dimensão não possuíam ainda.
   Foi criada uma farmácia, um jornal, um montepio que apoiava os trabalhadores de forma já muito compensadora, um grémio agrícola, uma cooperativa de consumo, já que antes a localidade tinha fundado uma associação de bombeiros, um posto médico, uma casa do “bailho”, onde o povo se divertia e todas estas estruturas sociais foram dando nas vistas a ponto de Salazar ordenar a seus homens para vigiarem e descortinarem porque razões tudo isto aparecia numa freguesia tão pequena que pouco mais de quinhentas pessoas teria nessa época.
    O resultado foi devastador, pois os cabecilhas de todas estas obras vanguardistas, acabaram por ser presos, uns porque eram empregados do Estado, caso de alguns funcionários da Casa da Moeda, outros da Fábrica da Pólvora e não tinham o direito de trabalhar para estas causas humanistas e como a revolta tinha sido grande contra o fascismo, atirou-os para as prisões cumprindo severos castigos, perdendo os seus bons empregos conseguidos anos antes de Salazar iniciar a governação e obviamente, que todas estas estruturas acabaram por se perder precocemente por falta dos verdadeiros cabecilhas e cartolas, à excepção dos bombeiros, da cooperativa de consumo e pouco mais.
  Foram todas estas estruturas que levaram a polícia do Estado a ter, a partir dessa época, uma maior atenção sobre aquela localidade, o que revoltava cada vez mais os que actuavam clandestinamente e de quando em quando lá ia mais uma série de homens presos por serem coniventes com alguns que já estavam encarcerados, muitos deles sem a mínima razão, o que obrigava a pesados castigos e a perderem os seus valores, deixando muitas casas à mingua, por lhes faltar o chefe de família, como acontecera com Serafim Nogueira, Heliodoro Pereira, mais tarde Pedro Barreiros e seu filho Serafim e tantos, só que essa preferência, essa luta clandestina, jamais deixaria de funcionar na freguesia de Barcarena, daí que os tempos mais recentes a localidade ainda tivesse sido governada por homens de esquerda, agora transformados em comunistas, principalmente depois da revolução de “25 de Abril”, mas como se verificaram melhorias, toda essa onda esquerdista se perdeu um pouco, entrando numa normalidade e num grande sossego político.
     Só agora, depois de ter entrado Passos Coelho para o governo, a revolta passar a invadir o cérebro dos portugueses, mas as tradições brandas do povo estão a obrigá-lo cobardemente a aceitar todas as suas nefastas decisões propostas por uma injusta Troika, deixando o povo à mingua.
    Na realidade a continuar assim, bem poderá haver um regresso a todas estas características que marcaram o povo português nas primeiros décadas do século passado, incluindo os barcarenenses, precisamente à quase cem anos, mas na verdade os tempos são outros, as mentalidades diferentes e fundamentalmente o emprego já é diverso, embora difícil de se conseguir, só que já não existe uma fábrica da pólvora em plena laboração, e o povo também adquiriu um estatuto bem mais apaziguador, que lhe permite tudo aceitar, discutir mas calar-se cobardemente, subjugando-se às ordens de um novo ditador que dá pelo nome de Pedro Passos Coelho e que para revolta maior dos habitantes desta freguesia, viver precisamente a pouco mais de um quilómetro da nossa gente, mais propriamente na vizinha povoação de Massamá.
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quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

                                   BAIRRO DA ESTAÇÃO TRANSFORMOU-SE COM A NOVA ESTAÇÃO DE CAMINHO DE FERRO
    O Bairro da Estação de Caminho de Ferro de Tercena - Barcarena, está a transformar-se aos poucos e poucos, descaracterizando por completo a antiga localidade do concelho de Oeiras.
    Naquele bairro que se formou bastante cedo devido o comboio ali passar no final do século XIX, a estação de Barcarena foi construída precisamente para no dia da sua inauguração, em 2 de Abril de 1887, prestar serviço público à escassa população de Tercena e Massamá, já que o primeiro combóio que chegou a Sintra foi em 1873 com o “Larmanjat”, um monocarril que com muitas dificuldades terá demorado no percurso desde Lisboa, uma Hora e cinquenta e cinco minutos.
     Aquele troço fazia parte da linha do Oeste, integrado na extensão concebida, do Cacém a Sintra, já que a escritura de trespasse da linha férrea de Lisboa a Sintra e Torres Vedras, com mudança no Cacém, tinha sido estabelecido dois anos antes, precisamente em 18 de Outubro de 1885.
     Em 1934 receberia um galardão honroso, pois ficou classificada no 5º lugar numa iniciativa de ajardinamento da linha de Sintra.
      A estação foi embelezada na década de trinta do século passado com a sua rua de acesso ladeada de plátanos, plantados naquela época por Clemente Antunes, então cantoneiro da Câmara Municipal de Oeiras, hoje desaparecidos para darem lugar à ampliação do largo fronteiriço à nova e moderníssima estação de caminho de ferro que se concluiu agora.
     O embarque de passageiros da nova Estação que já funciona no edifício moderno, trouxe uma enorme comodidade aos passageiros de ambas as localidades, assim como maior segurança no embarque e desembarque.
      Para tristeza de todos os tercenenses, o velho edifício da estação, construído na penúltima década do século XIX, foi demolido, o que muita saudade deixou, pelo menos aos que ainda sobrevivem e se recordam do seu escasso movimento nos anos trinta e quarenta, só que o modernismo não se compadece destes saudosismos.
   A tranquilidade que se vivia na gare de embarque, onde por norma pouco mais de uma dezena de pessoas embarcava nas horas de ponta nas velhas carruagens engatadas às fumarentas locomotivas que puxavam essas primitivas carruagens, formato gaiolas, já há muitos anos deixou de existir, assim como essas ancestrais relíquias que transportavam os passageiros deixaram de funcionar, dando lugar aos modernos comboios eléctricos.
     Os campos verdejantes que se estendiam por detrás das protecções de madeira onde se recolhiam os passageiros esperando pelos comboios, a abundância de aves e outras espécies cinegéticas, que convidavam a juventude à sua caça, as saborosas amoras que forneciam as muitas amoreiras que se estendiam ao longo da empedrada gare, eram grandes atractivos para os pouco exigentes passageiros daquela época, que enquanto não chegava o transporte cortavam as folhas para alimentar os bichos de seda que seus filhos guardavam religiosamente em caixas de sapatos.
     A Fábrica da Pólvora era um dos grandes clientes do caminho de ferro nessa época, com o embarque das suas pólvoras para os mais diversos pontos do país, juntando semanalmente três e quatro vagões pela calada da noite, incomodando, é verdade, os moradores do local, mas o tempo dera-lhes paciência e habituação para aqueles nocturnos movimentos extraordinários de comboios de mercadorias, mas que faziam com que a estação fosse, apesar do seu fraco movimento, rentável.
     Com o decorrer dos tempos, a estação foi recebendo cada vez mais pessoas interessadas naquele transporte, pois Massamá cresceu com grande rapidez, Tercena nem tanto, mas a verdade é que se chegou a um ponto que era de facto urgente pensar-se a sério no embarque de passageiros que, diariamente, no final do século XX, se elevava a muitos milhares de utentes e dependentes do caminho de ferro.
   Finalmente a nova estação está construída e com os mais modernos requisitos, nada lhe faltando, amplos espaços para o estacionamento de viaturas, escadas rolantes, elevadores para servirem as quatro linhas, duas das quais e parte do edifício que irá servir a população de Tercena.
    As entradas da estação ficaram imponentes, preparadas para receber o trânsito rodoviário, comércio, vários serviços, obra que, quer os tercenenses, quer os habitantes de Massamá, muito se irão orgulhar, porque na realidade vietam valorizar e beneficiar, de maneira extraordinária as duas populações.
   Do lado de Tercena a nova rotunda irá permitir um acesso mais fácil à Estação, inclusivamente podendo levar ali os autocarros de transporte público o que até agora era quase impossível.
   Uma realidade que virá trazer largas melhorias ao local, mas muitas mais traria, no caso de Tercena, se a velha e quase deserta Avenida Aurora fosse prolongada e ligada à rede de ruas paralelas ao “IC19”, pois então o trânsito já poderia circular melhor e isso seria ainda muito mais benéfico para toda a gente.
    De qualquer forma a Av. Comendador Álvaro Vilela, deixou de ter os plátanos e com eles desaparecidos, quase foge da nossa memória as antigas histórias que ligavam o povo tercenense ao grande benemérito que tanta força e empenho mostrara no engrandecimento daquele núcleo habitacional, e afinal de Tercena.
    Foi pela sua mão que surgiram as primeiras escolas oficiais da localidade, o Grémio Escolar de Torcena e em 1946 o Posto Escolar de Tercena no edifício sede do Grupo Recreativo de Tercena, ambos sob a tutela daquele grande homem que ali tinha criado o seu quartel general na “Quinta de Santo António”, já que era administrador do Banco Espírito Santo, albergando durante anos as crianças da terra no ensino das primeiras letras.
    Ficam as recordações, as fotos antigas, os escritos e o grande cenário que se impõe altaneiro no Museu Etnográfico de Tercena para recordar esses saudosos tempos em que toda a gente se conhecia e que era diminuta a utilização dos fumarentos e pouco cómodos comboios da linha de Sintra.
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terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Antigamente as pessoas eram mais humanas

O CASAL “MIRA”
E O APOIO SOCIAL E HUMANO QUE DAVA AOS MAIS NECESSITADOS
   Tercena conheceu nos anos quarenta e cinquenta, uma família que ficou marcada na história desta terra como uma das mais sociais e humanas que por Tercena passou.
  Porfírio Simões e Maria Francisca, eram naturais da região de Sines e vieram para Tercena muito novos, precisamente nos primeiros anos da década de quarenta.
    Ela tinha servido durante muito tempo em casas de Lisboa, naquele tempo, mulheres que trabalhavam como criadas, viviam debaixo do mesmo tecto que os seus patrões, indo à sua terra Natal de tempos a tempos, pois eram como que escravas das famílias mais abastadas, contudo como a vida estava má e nas suas terras de origem ganhavam muito pouco, estas raparigas sem estudos, muitas até sem saberem ler, obrigavam-se a servir e passar por estas aventuras.
   Conhecemos muitas que até eram abusadas pelos seus patrões, e pobres, de condição baixa, sujeitavam-se a isso, apenas para poderem usufruir de um pouco de carinho, uma melhor alimentação, já que a fraca jorna que lhes era atribuída ao final do mês, e muitas até só no final do ano, era uma mais valia importantíssima para delinearem o seu futuro.
   A Maria Francisca, vulgarmente conhecida pela “Mira” trabalhou em Lisboa em diversas casas, e por este processo, logo que viu chegar a oportunidade de se soltar desta vida, acompanhou o seu marido, o Porfírio Simões, também alcunhado pelo “Mira” numa migração vulgar, em busca de melhores dias junto da capital portuguesa, acabando por se radicarem em Tercena.
  Ela era muito espirituosa e mais tarde, quando lhe ofereciam sopa para comer respondia altiva e com um sorriso muito especial no rosto.
    “Sopa, farta de ser sopeira fiquei eu quando trabalhava em casa das minhas patroas”.
  Ele, atraído pelo trabalho quase garantido da Fábrica da Pólvora e ela, deixando as suas antigas patroas, partiram para uma nova aventura, deixando os seus familiares e o seu torrão natal.
    A II Guerra Mundial estava instalada no seio da Europa, e a guerra civil de Espanha matava a esmo em terras de “nuestros irmanos” e estes dois terríveis acontecimentos na Europa, obrigavam que a Fábrica Militar de Barcarena, não parasse de noite e dia no fabrico de material bélico para os abastecer, porque Salazar não dormia, esperto não participou nestes conflitos, mantendo neutralidade apenas para poder facturar as muitas munições e explosivos que fabricava em Barcarena.
    Foram pais de três filhos, a Alda, a Manuela e o Álvaro e foram morar numas casas pertencentes ao Filinto Silva e por ali se deixaram ficar durante muito tempo, pois este proprietário, como era empregado superior na Fábrica da Pólvora, arranjou-lhe trabalho naquela unidade fabril.
  Ele, tal qual se previa, colocou-se radiante na fábrica como servente e ela ficou-se pelos seus trabalhos domésticos, uma vez que, com três filhos pequenos para criar, tinha muito com que se entreter.
  Tornou-se um casal muito popular por serem muito prestáveis, pois ela a todos acudia e mesmo com escassos recursos, valia a toda a gente, enquanto ele não lhe ficava nada atrás, pois sempre que alguém lhe solicitava os seus préstimos, acorria de imediato sem olhar a recompensas, embora por vezes recebesse compensações, especialmente quando era chamado para despejar fossas, enterrar animais domésticos que morriam, ou para vestir defuntos, tarefa que tanto ele, como ela se prestavam com a maior das simplicidades, recebendo depois roupas daquele que faleciam, homem ou mulher e logo no dia a seguir usavam essas mesmas vestes sem possuírem quaisquer dúvidas ou receios.
     Mas a família “Mira” ficou caracterizada pelo facto de ser muito humana, no entanto não se julgue que vivesse desafogadamente, pois bem ao invés, ele com um mísero ordenado de vinte e oito escudos por dia, mal chegava ao fim de semana para alimentar a família e por essas razões, ela, obrigava-se a lavar roupas, ou fazer quaisquer outros serviços, a quem lhe solicitasse.
     Na época do Natal apareciam sempre em Tercena, grupos familiares que deambulavam miseravelmente pelo país apresentando um simples espectáculo de circo ao ar livre e então, por norma, faziam o seu trabalho quase junto à sua porta, precisamente na entrada da Travessa 5 de Outubro que comunica com o chafariz e tanque das lavadeiras a caminho do lugar do Bico.
    Era aí que essa gente pousava, sem consentimento de ninguém, mas também, verdade se diga, que nenhum vizinho reclamava, por saberem que se tratava de gente muito pobre que daquela forma tentava ganhar a vida e era precisamente a “Mira” que ao ver, por vezes, crianças pequenas, mal vestidas, passando fome e frio com roupas de todo o ano, que as levava para sua casa, lhes dava de comer e vestindo-as com trapos velhos de seus filhos, mas muito melhores que aqueles que as crianças usavam e isso era uma acção social que, embora na época ninguém reparasse, deixava-a bastante consolada, porque custava-lhe muito ver aqueles desgraçados inocentes, que não tinham a culpa de terem nascido, passarem tão mal e por vezes tão pequenos.
   Os pais lá apresentavam à noite, quando o tempo deixava, o seu modesto espectáculo, onde não faltava a cabra e o burro escanzelados, grande transporte dos parcos apetrechos do improvisado circo, o escadote e alguns sacos com as suas roupas encardidas e acabrunhadas com que se apresentavam ao público.
    As pessoas de Tercena compareciam para ver, também diga-se em abono da verdade, que pouca animação havia na terra, pois raramente se faziam espectáculos na colectividade local e então servia para passarem um pouco de tempo e também, muitos com o sentido humano de ajudar aquela pobre família, que daquela forma corria o país de terra em terra.
  A “Mira” facilitava a sua pobre casa a esta gente, dando-lhes comer, e por vezes até dormida, quando via que era desumano deixar aquela família aconchegar-se debaixo de um pano que armavam com duas varas, atrás da casa da D. Esperança ou do tanque onde as mulheres lavavam a roupa, para passarem a noite, sabedora de que chovia fortemente.
  Era isto que mais ninguém se atrevia a fazer, sem conhecer as pessoas de lado nenhum, sujeita a criar problemas, mas esses medos eram coisas que não pairavam na mente daquele casal, considerado os pais dos desgraçados que gravitavam por esse país fora e de quando em quando apareciam em Tercena.
  Também nas noites cálidas do verão, aparecia o homem do cinema com a sua máquina muito obsoleta, funcionando a acetileno, que projectava contra a parede alva da Margarida Pires, mesmo diante do café do Parreirinha, os filmes mudos que encantavam, especialmente a rapaziada, que, quando os viam chegar, andavam de um lado para o outro a transmitir às pessoas do lugar que tinha chegado o homem do cinema.
  E a grande verdade é que o muro do “Lagarto” enchia-se de gente ávida por ver aquelas películas americanas muito antigas, como o “Charlot”, filmes de cowbois e tantas outros a preto e branco, sendo mesmo um grande entertenimento às vezes durante uma semana.
    O “Mira” recebia aqueles homens como que fosse o “alcaide” da terra, o chefe de uma clã, ou comparável, dando-lhes de comer e era ele que no final da sessão passava com uma bandeja a recolher donativos para ofertar ao projectista que agradecia imenso retirando-lhe uma grande e importante tarefa.
    O “Mira” adorava ver estes filmes, especialmente os de cowbois e quando as coisas corriam mal para o lado do herói da fita, gritava:
   “Mira manca está com a tranca”, ou então quando se tratava de cenas mais amorosas, o “Mira derretia-se todo e gritava; “agora o rapaz morreu e a rapariga casa com o cavalo”.
  Uma gargalhada fazia-se ouvir e a boa disposição reinava sempre nessas noites agradáveis, onde as pessoas acorriam por o cinema nessa época ser uma grande novidade, e Tercena raramente receber os ambulantes que, projectavam esses filmes na colectividade, já com som e com grandes artistas, só que era muito raro, aparecendo em média duas ou três vezes por ano.
   Ainda neste tipo de distracção, na localidade, nos anos quarenta e cinquenta surgiam ainda pelo menos duas vezes por ano o ventrículo que portava sempre dois bonecos, o “Sebastião” e o “Ambrósio”, que se detestavam, nas histórias que o artista contava com entusiasmo e um certo humor.
     E perguntava a ambos: “Ambrósio”, o mais mariquinhas, “o que queres ser quando fores grande ?”
    E o boneco, através da voz de falsete do artista, respondia: 
”Passarinho”.  “Para quê ?”, insistia o artista.
    “Para poder voar pelo espaço!”, respondia o boneco.
    Depois virando-se para o outro, mais malandreco e refilão, questionava-o:  “E tu Sebastião ?”  respondendo logo de seguida  “Espingarda!”.
     O artista voltava a perguntar:  “Para quê ?”
      E o Sebastião com voz grossa de rufia, ripostava. “Para matar o passarinho. Eu não o gramo!”.
  Era uma risota geral à porta da mercearia do Lagarto, no largo 1º Maio onde as pessoas, munidas de cadeiras que traziam de casa, ali se sentavam para ver este tipo de espectáculo, que tinha tanto de artístico, como de boa disposição.
   Tratava-se de pessoas mais evoluídas, privilegiadas que já não se apresentavam tão miseravelmente como as do circo ou do cinema e assim viviam correndo as localidades vizinha com estes improvisados programas que distraíam o povo, já que este, por norma não tinha acesso aos grandes espectáculos que decorriam na capital, e nos grandes centros urbanos.
    Mas a grande verdade e moral destas histórias era o espírito humano e social que reinava no seio das nossas gentes, pois acolhia estes personagens, alguns até com grandes recursos artísticos, com todo o carinho, sem desconfianças, ajudando-os na sua grande e árdua luta pela vida e por norma sempre olhando as crianças que se obrigavam a deambular junto de seus familiares, tanta vez passando fome, sem acesso à escolaridade e logo de pequeninos, obrigando-se a participarem no espectáculo fazendo números arriscados, como era o obrigatório número de contorcionismo que, sem exibirem grande qualidade, acabavam por ser aplaudidos por se perceber o grande esforço, a sua grande coragem que demonstravam e sobretudo tratarem-se de crianças de tenra idade, imbuídas já no espírito de ajudar os seus pais para que pudessem passar um pouco melhor.     
   A “Mira” era uma pessoa muito sensível e por isso ficou demarcada pelo seu grande espírito humano, altruísta e amiga de quem tinha dificuldades, esquecendo-se muita das vezes que ela pertencia a esse mesmo grupo social, já que na sua casa também tinha que acorrer a apoios extras por nutrir sérias dificuldades, pois o ordenado de seu marido não chegava para fazer face às despesas das cinco pessoas que compunham o seu agregado familiar, dando aquilo que tinha em casa aos outros por entender serem mais necessitados que ela, faltando, incrivelmente, por vezes aos seus próprios filhos.
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