segunda-feira, 30 de maio de 2011

A QUINTA ONDE VIVEU A FAMÍLIA DO CAPITÃO SILVEIRA ANTES TINHA SIDO PROPRIEDADE DO ESCULTOR BARATA FEYO
   A Quinta do Capitão Silveira, de seu nome próprio, António Luís da Silveira, era vulgarmente conhecida desde sempre, pela “Quinta do Senhor Capitão”, casado com a D. Maria Luísa Couceiro Feyo Silveira e situava-se em Tercena em plena Av. de Santo António.
     A propriedade acabaria mais tarde, nos anos oitenta, por ser demolida pelos seus últimos proprietários, para que não fosse invadida pelos refugiados de Angola e Moçambique, que na altura lutavam por uma casa e que tinham vindo de África e o capitão acabaria por ser um dos últimos a viver nela, embora ainda tivesse lá vivido uma outra família, mas por pouco tempo.
    Um dos primeiros moradores da Quinta, que tivemos conhecimento, foi de facto o famoso escultor Salvador Carvão da Silva d'Eça Barata Feyo, militar graduado, pois atingiu a patente de general, nascido em Moçâmedes, a 5 de Dezembro de 1899 e tendo falecido 90 anos depois, precisamente a 31 de Janeiro de 1990.
    Esta ilustre figura das nossas artes e do exército, que se supõe ainda ter sido parente da esposa do capitão Silveira, foi autor de inúmeros trabalhos que se encontram espalhados pelo nosso pais e estrangeiro. Frequentou o Colégio Militar, mas concluiu o Liceu em Coimbra e em Lisboa, obras como a Estátua de Bartolomeu Dias na cidade do Cabo concebida em 1952, estátua de Francisco Sanches construída em 1954 em Braga, o monumento a Almeida Garrett criado em 1951 e edificada na praça Humberto Delgado no Porto, entre muitos outras.
   Terminou o curso de Escultura em Julho de 1929 na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, onde frequentou, também, os cursos de Pintura e Arquitectura, respectivamente em 1923-1924 e 1924-1925.
   Em 1933 esteve em Itália como bolseiro do Instituto de Alta Cultura e no ano de 1949, deixou Tercena, uma vez que teve de viver no Porto, onde fixara residência, já que fora colocado como professor na Escola Superior de Belas-Artes, período que mediou entre 1949 e 1972.
    Entretanto de 1950 e 1960, Barata Feyo foi Conservador Adjunto dos Museus e Palácios Nacionais e Director do Museu Nacional de Soares dos Reis.
   Publicou dois livros sobre “A Escultura de Alcobaça” e “José Tagarro” e vários estudos sobre artistas portugueses no jornal O “Comércio do Porto”, entre muitíssimos trabalhos que lhe deram uma grande fama.
    Depois dele, vivera uma outra família que pouco tempo nela estivera, devido a uma das senhoras que lá viviam, que se supõe ser a esposa do arrendatário, ter-se suicidado com um corte nos pulsos.
  Após este incidente, a quinta ficou livre, mas também esteve nela pouco tempo, pois a mulher acabaria por morrer no hospital e o capitão Silveira, que vivia na Quinta do Marques Café, um pouco mais para norte da localidade, mudou-se imediatamente para lá por entender possuir uma habitação com melhores condições que aquela onde vivia, e também porque a família aumentava, embora também fosse dotada com um bom espaço agrícola .
    O Capitão Silveira viveu ali durante alguns anos, onde cresceram os seus netos, conjuntamente com a família, pois tratava-se de uma vivenda muito antiga.
   Era uma casa bonita, murada para a rua principal, possuindo igualmente boas condições para a agricultura, que passou a ser cuidada por um amigo que se prontificara a tal, a cobro de alguns legumes que ali produzia, já que a família estava muito ocupada com a sua vida.
  Chamava-se José, mas o povo conhecia-o por “Zé da Estaquinha”, alcunha que recebera na Fábrica da Pólvora e fazia aquele trabalho de hortelão, nas horas disponíveis, já que a sua mulher, a “Deolinda da Loura”, trabalhava na casa do capitão a dias, como doméstica.
     Foi precisamente nos anos quarenta que o capitão ocupou aquela propriedade, que confrontava com a casa do Duarte Silva, onde tinha sido criada a famosa mercearia do “Lagarto”.
  A Quinta em Tercena deixada pelo escultor, e onde passara a viver a família Silveira, uns anos mais tarde, depois da morte do militar, foi transmitida à filha do capitão, D. Helena Silveira Carrega, mãe do falecido João Luís Carrega e de Fernando Manuel Carrega, que viveram nela ainda alguns anos mais.
    Os netos do velho capitão cresceram, resolveram suas vidas e como a D. Helena ficara viúva, esta fora viver para uma propriedade no Cacém e a casa acabaria por ser ocupada por uma outra família, mas pouco anos depois ficara totalmente abandonada.
    Viviam-se o ano eufórico do “25 de Abril”, e logo os comunistas de Tercena, acharam que aquele edifício abandonado era ideal para a adaptação de uma creche para as crianças da terra e nesse sentido, começaram a agrupar vários materiais de construção, ofertas de amigos e simpatizantes do partido para se recuperar o edifício, mas esse movimento acabara por abortar, os materiais entretanto conseguidos desapareceram num ápice e o edifício manteve-se durante alguns anos completamente abandonado, degradando-se a ponto dos seus proprietários o terem mandado demolir, para não ser alvo de mais ilegalidades e ocupações selvagens.
   Hoje resta apenas o velho muro fronteiriço com a rua e o seu interior foi transformado numa grande horta, que é trabalhada por diversas pessoas que dali vão retirando os seus produtos hortícolas até que os seus verdadeiros e legítimos proprietários tomem decisões sobre o futuro daquele importante espaço mesmo no centro da população, que de ano para ano vai crescendo e obviamente valorizando-se bastante.
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domingo, 22 de maio de 2011

Lembrando Velhos Tempos

PARTE DO ESPÓLIO DA ENFERMARIA DA FÁBRICA DA PÓLVORA FOI PARA O MUSEU DE TERCENA
      
    É difícil explicar as razões porque ficou para o Museu Etnográfico de Tercena, todo o espólio existente na velha enfermaria da Fábrica da Pólvora, contudo uma vez que ela terminara as suas funções, sendo inclusivamente o edifício demolido, tudo quanto restava, passou para o Posto de Enfermagem da Junta de Freguesia de Barcarena que concebera numa sala no Grupo Recreativo de Tercena.
   Era uma velha aspiração do executivo barcarenense e a oportunidade surgiu precisamente quando a fábrica deixou de funcionar e então, desde os móveis aos utensílios médicos, tudo fora doado à Junta e colocado em Tercena, que, na altura dera um grande jeito, para de imediato se recomeçar com aquele serviço, reconheça-se, bastante desejado pela população tercenense.
    Passados uns anos, a sede do Grupo Recreativo de Tercena, foi alvo de obras de remodelação, pois a direcção que lá se encontrava nesse ano, interessou-se por tal e solicitou à Câmara Municipal para que remodelasse todo o seu interior, já que, exteriormente nada se podia fazer por o Plano Director Municipal não o permitir.
   A direcção que se encontrava, desejava fomentar o ténis de mesa, pois havia interesses particulares nisso, já que o jovem João Monteiro, que acabaria por se tornar um grande campeão internacional na modalidade, filho de um dos directores, estava em grandes progressos na modalidade e assim, com o salão apropriado para se colocarem mais mesas de ping-pong a modalidade poderia desenvolver-se muito mais, o que acabaria por acontecer.
   As obras foram feiras, inauguradas, mas sempre com a oposição àquela direcção a ser bem forte por parte de um grupo de sócios, contudo, descuraram o projecto e a verdade é que a nova sede nem sequer condições possuía para se efectuar teatro, actividade que já se desenvolvia na colectividade desde a sua fundação.
  Esse facto fora muito contestado, e só mais tarde se criou um espaço para as actividades teatrais, no seu anterior, adaptado à nova sala, que se apresentava ampla precisamente como a direcção pretendia para ali colocar várias mesas de ping-pong, mas o teatro ficou seriamente prejudicado, porque o novo espaço era pequeno e sem condições, mas teve de remediar, porque de outra forma não podia ser, depois das obras executadas.
  Na nova sede, previa-se que o velho posto de enfermagem não iria ser construído e antes de se iniciarem as obras a Junta de Freguesia de Barcarena pressionada pela população de Tercena, que estava a ver que iria ficar sem aquele serviço enquanto as obras durassem, solicitou a Fernando Silva que emprestasse uma das suas salas na Quinta do Filinto, para ali instalar provisoriamente o posto de enfermagem, pois adivinhava-se que o tempo considerado suficiente para as obras fosse muito para além do previsto e na realidade assim aconteceu, pois o espaço na Quinta do Filinto fora pedido por três a quatro meses e na realidade tardou três anos.
    Durante todo esse tempo todo, o posto de enfermagem funcionou provisoriamente na Quinta, assim como até, os treinos e jogos das equipas de ténis de mesa do GRT, passaram a realizar-se também ali a empréstimo de Fernando Silva que, na qualidade de amigo da colectividade nada exigiu para que tudo aquilo ali funcionasse.
    O Posto trabalhou normal e diariamente e quando as obras acabaram por ser inauguradas, sem grandes espantos toda a gente constatou que o Posto de Enfermagem da autarquia não tinha lugar na nova e remodelada sede do Grupo Recreativo de Tercena.
   Como entretanto tinha sido inaugurado o mercado Municipal de Tercena, logo se pensou instalar ali o Posto de Enfermagem, aliviando assim Fernando Silva.
  O posto foi mudado, contudo o seu recheio, na maioria foi rejeitado, pois não fazia sentido uma casa, praticamente nova, receber material antigo, obsoleto e praticamente já sem qualquer utilidade, pois as novas tecnologias impuseram-se e como tal, a Junta de Freguesia, propôs a Fernando Silva, a oferta de todo aquele velho espólio, par ao museu que entretanto se tinha criado na Quinta do Filinto.
  Fernando Silva aceitou e foi então que criou um recanto onde colocou não só a secretária, a velha cadeira giratória e todos os utensílios que tinham sido rejeitados na nova instalação e que, no Museu têm sido apreciados, não só por ter pertencido à famosa Fábrica da Pólvora, como por se tratar de peças muito antigas, praticamente sem uso nos tempos actuais e que na realidade só dentro de um museu teriam cabimento.
   Seringas, aparelhos de medir a tensão, ventosas, agulhas, caixas de esterilização e tantas outras coisas encontram-se assim, hoje em exposição mo Museu o que se considera uma mais valia para aquele espaço museológico de Tercena.
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terça-feira, 17 de maio de 2011

Recordações do Passado

A ENFERMARIA DA FÁBRICA DA PÓLVORA
 VALEU A TODA A GENTE DA FREGUESIA
      Foi uma valência que o povo da freguesia tinha e toda a gente se sentia bem, porque tinha acesso a assistência médica, e o pessoal então ainda muito mais pois possuía o hospital militar que estava bem apetrechado, e inclusivamente a própria enfermaria da unidade fabril possuía um serviço de assistência médica considerado dos melhores do pais em fábricas deste tipo.
     A Fabrica da Pólvora de Barcarena teve desde sempre um excelente serviço médico social para os seus funcionários.
     Este excelente serviço já vinha do tempo em que pertencia ao Estado, na primeira metade do século XX, pois a sua administração criou um Posto de Enfermagem que, na altura, foi considerado do melhor que existia em fábricas nacionais, e ainda o número de funcionários não era elevado, pois nesse tempo nunca chegara a atingir as duas centenas de empregados.
 Contudo, a Fábrica dava-se já ao luxo de possuir dois médicos que davam consultas em todos os dias da semana, precisamente o Dr. Líbério e o seu homólogo, Dr. Malheiros, que não só observavam os empregados doentes, como suas famílias, sendo uma mais valia para a população da freguesia já que, quase todas elas tinham pessoas a trabalhar na Fábrica.
     O D. Malheiros e o Dr. Libério tinham funções no Hospital de S. José e quando detectavam casos mais graves nos funcionários ou suas famílias, indicavam-lhes o seu serviço e ali então eram vistos com mais atenção, pese embora os funcionários da Fábrica da Pólvora fossem imediatamente transferidos para o Hospital Militar Principal sedeado na bairro da Estrela em Lisboa.
   Por norma, eram os familiares que eram vistos com mais atenção no Hospital de S. José e foram vários os que ali foram assistidos cirurgicamente, como o autor deste trabalho que acabou por ser operado de urgência às amígdalas nos serviços de pediatria do Hospital, sem pagar qualquer importância, enquanto outros doentes teriam de esperar tempos intermináveis para tais cirurgias se efectuarem.
    Os serviços médico ou sociais da Fábrica possuíam ainda um enfermeiro em regime permanente durante as oito horas de serviço, e o António Trindade, não tinha mãos a medir, pois não só dava assistência aos funcionários, como a suas famílias e ainda a todos os sinistrados das redondezas, pois eram imediatamente conduzidos à Fábrica da Pólvora, quando os casos não eram demasiado graves.
    Era um serviço muito útil que se dava à população e a administração não colocava qualquer entrave para que a assistência fosse imediatamente prestada, ou pelo menos os primeiros socorros e ninguém pagava absolutamente nada.
   O Posto de Enfermagem já tinha nesse remota época, ao lado uma enfermaria com duas camas, onde eram internados os funcionários doentes, embora por pouco tempo, por se saber que em muitas  das suas casas, não existiam boas condições e então permaneciam ali, um dois ou três dias até estarem bons, e sempre em casos pouco graves, porque se as doenças fossem de maior gravidade, eram imediatamente transferidos para o Hospital da Estrela em Lisboa.
   Quando algum funcionário se obrigava a ficar internado na enfermaria de Barcarena, o enfermeiro não abandonava o seu serviço e nada faltava ao paciente, só que a partir de 1951, esse serviço era raro efectuar-se, porque nessa altura já a mobilização de motoristas para conduzirem a única ambulância dos Bombeiros de Barcarena, era mais fácil, mas houve épocas em que o grande problema era conseguir-se gente que soubesse manobrar as viaturas de socorro e então teria de sair alguém da Fábrica, muita das vezes a pé, quase dois quilómetros, para ir buscar a ambulância ao quartel e conduzir então o doente ao hospital.
    Entretanto, os médicos permanentes também se reformaram e para os substituir apareceu o Dr. Sousa Pereira que tinha consultório particular na Amadora e já nesse tempo, aconselhava os doentes a serem mais bem avaliados nele, só que se obrigavam a pagar as consultas particulares.
     Mais tarde juntou-se a este o Dr. Sousa Uva que, com o colega, repartia durante a semana com consultas para os funcionários e era deles que saía sempre a ordem de baixa, que nesse tempo era denominada por “Parte de Doente” e os empregados, ou eram conduzidos ao hospital, ou então, quando os casos não eram graves, estavam proibidos de sair de casa, porque era vulgar os clínicos fazerem as suas visitas domiciliárias e se os funcionários não se encontrassem lá eram castigados.
    Este magnífico serviço manteve-se durante muitos anos, mas depois, com o aparecimento da Caixa de Previdência, os pacientes eram apenas socorridos na enfermaria quando se aleijavam ao serviço e depois eram conduzidos para os Postos da Caixa de Previdência, primeiro na Amadora, depois em Queluz e só em Barcarena, muitos anos mais tarde.
   Os serviços médico sociais da Fábrica da Pólvora foram sempre muito elogiados porque tiveram ao longo dos anos, desde quase do princípio do século vinte, uma grande eficácia e isto graças aos cuidados das administrações que passaram pela Fábrica, já que nunca descuraram este serviço, não obstante todo o pessoal ganhar sempre muito pouco, em relação a outras firmas particulares.
    Contudo estas vantagens sociais, davam a preferência aos trabalhadores, pois os colocados na Fábrica da Pólvora, não só recebiam todos os dias da semana, chovesse ou que fizesse muito calor, como tinham assistência médica gratuita e garantida, abrangidos pela Caixa de Previdência e ainda um período de férias anual, enquanto que quem trabalhava no campo, se chovesse ninguém ganhava e se houvesse acidente ou estivessem doentes, teriam de recorrer ao hospital de S. José em Lisboa, o que, naquela época com a falta de recursos, nem sempre era eficaz, por falta de serviços de assistência ambulatória.
      A enfermaria da Fábrica da Pólvora era sempre o local, em caso de explosões, onde recolhiam os corpos dos sinistrados, pois só ali eram reconhecidos e depois de se avisar as respectivas famílias, eram então conduzidos a uma sala denominada Museu, de onde saíam os respectivos funerais.
  Hoje quando recordamos estes factos toda a gente se admira como, no seio de tantas carências que existiam nessa época, este serviço de assistência médica na Fábrica da Pólvora era esmerado, não só para o seu pessoal, como afinal para toda a gente que vivia na freguesia de Barcarena.  
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segunda-feira, 2 de maio de 2011

O Mestre Instrutor da Fábrica da Pólvora de Barcarena

FRANCISCO ASSIS MAFRA
UM HOMEM DEDICADO AO FABRICO DE PÓLVORA NEGRA
DURANTE SETE DÉCADAS

     O Mestre Instrutor Francisco Assis Mafra que tanto pugnara por impor um serviço sério e sobretudo seguro dentro das oficinas de fabrico de pólvora, acabou por evitar que as suas pólvoras fossem trocadas por outras mais modernas, sacrificando-se caprichosamente ao serviço da fábrica uma eternidade para não divulgar os seus importantes segredos a quem os queria apenas conhecer em pormenor, mas retirá-las do comércio, falecendo pouco tempo depois de ter saído da fábrica, mais por adivinhar que estava chegado o seu fim que, por razões de cansaço ou saturação de mais de sete décadas de dedicado serviço.
     Era um homem que no final da carreira sentia-se frustrado pois via com desagrado, que todo o seu trabalho de ensinamento e até de formação de determinados empregados, considerados exemplares estava a perder-se com o ritmo louco de trabalho dentro do serviço da Fonte Caiada, onde se produziam as pólvoras.
   Quis reformar-se porque já era altura disso, mas não o deixaram, por considerarem que ele fazia ainda muita falta e sobretudo porque guardava com ele grandes segredos daquele serviço de pólvoras e mais ninguém tivera o cuidado de o seguir por perto e afinal assumir-se como o seu legítimo continuador.
  Tudo passava pelo laboratório onde ele se encontrava, já velhote, mas seguro nos seus conhecimentos, das suas determinações, das sábias explicações, mas sem dúvida que se tratava de um homem diferente, responsável, íntegro, amigo dos empregados, só que da sua boca não saía uma única palavra, para ensinamentos, pois tinha ficado insatisfeito com a movimentação louca e desenfreada, que só viria a terminar quando a II Guerra Mundial findara, com o desfilar triunfante das heróicas tropas aliadas no Arco do Triunfo em Paris em 1945.
    Nessa altura já soavam rumores de que a Fábrica de Barcarena iria passar de dono e obviamente por grandes transformações, pois falava-se que havia uma companhia belga, ligada à indústria e fabrico de pólvoras que pretendia adquiri-la, sobretudo acabar com a obsoleta pólvora preta e fabricar a já muito badalada pólvora branca que sustentava com êxito o novo fabrico de armas automáticas e de sistemas mais sofisticados.
     Eram armas que, francamente, ainda pouco se pensava em Portugal, por se tratar de um povo pobre e como tal, mudar as velhas armas de cães, era ainda prematuro e mesmo impensável para muitos.
     (a) Era a hora ideal para sair, aquele homem que todos conheciam como Francisco Assis Mafra, nascido a 26 de Setembro de 1878, considerado um dos mais exemplares empregados da Fábrica da Pólvora de Barcarena, não só pelas suas qualidades de trabalho que o guindaram ao mais alto posto de chefia daquele estabelecimento fabril, como pela grande quantidade de anos que o obrigara voluntariamente a trabalhar naquela casa, já que ali estivera durante setenta e um anos.
     Entrou para a Fábrica em 1889, com apenas onze anos de idade, como aprendiz pirotécnico, passou por toda a escala oficinal, trabalhando como servente menor polvorista, servente maior polvorista e chegando a operário polvorista.
    Em 1902 fez concurso para contramestre, em 1918 foi nomeado mestre e em Agosto de 1926, passou a mestre instrutor de pólvoras e depois a Mestre Instrutor do Pessoal.
  Uma carreira brilhante atingindo o máximo como empregado fabril apenas com 37 anos de idade, exemplo único dentro da Fábrica que já laborava desde 1729.
      O Mestre Instrutor Francisco Assis Mafra foi elogiado por toda a gente, desde os singelos empregados, a directores, oficiais, e a prová-lo, está a leitura das ordens de serviço antigas, manancial importantíssimo de ensinamentos.
   Ao longo de todos estes anos, que atravessaram dois séculos, o Mestre dedicou toda a sua inteligência, todo o seu esforço e a sua persistência, visando o bom nome e o progresso da Fábrica.
    Foi um homem incansável e duma heróica dedicação pelo serviço, sempre pronto a todos os sacrifícios, escapando por vezes, milagrosamente, ao acidente que poderia ter grande amplitude, valendo a calma secular de um operário pirotécnico, que inadvertidamente provocara o acidente, o qual sanara com uma serenidade extraordinária.
     A sua experiência dera-lhe bases suficientes para com a força superior da sua energia, conjuntamente com as muitas famílias operárias que ali trabalharam, conhecimento que acabariam por ser o grande elo de ligação entre exímias gerações de dirigentes, que pela fábrica passaram.
      Executando sempre uma missão de continuidade nacional, defendendo acima de tudo, e muitas das vezes lutando contra forças exteriores, esmagadoras, tentadoras aos interesses do Estado, com a simplicidade da resposta, que este lhe pagava para servir e não para o trair, acabando por nunca ceder a outros por preço nenhum, os segredos fabris que tanto esforço, sacrifício e despesa proporcionaram.
    O Mestre Instrutor que acabaria por ser homenageado em 22 de Maio de 1948 com 59 anos de serviço, foi merecedor dos maiores elogios, não só do pessoal como de toda a chefia e administração que não se cansaram de lhe dedicar palavras de elogio, como as proferidas pelo Mestre Geral dessa época, João Gonçalves.
     “Toda a gente das redondezas sabe da sua classe, do seu valor e da sua grande utilidade dentro desta fábrica, mesmo que outras provas não houvesse, bastaria o facto concreto e insofismável, de, depois de todos estes anos em que teve nas mãos, por dever do ofício, conhecimentos e dados que deram a outros grandes fortunas.”
      “O Mestre Assis Mafra, apesar disso, desenvolveu uma vida modesta e económica, possuindo apenas o que sempre se pretende alcançar e conservar e que também é, quanto a mim, o maior tesouro, legar o seu nome honrado e digno a seus dedicados filhos.”
    Palavras que definem bem as aptidões e os verdadeiros interesses de um homem, que sempre pugnou pelo desenvolvimento da sua Fábrica e se assim não fosse, não estaria tantos anos ao seu serviço.
   Qualquer actividade industrial é sempre mais ou menos complexa e se um homem, como ele, quis viver sempre sem proteccionismos, baseando-se sempre no fruto do trabalho apurado e da técnica servida por inteligência segura, numa luta contínua, resistindo juntamente nessa luta porfiada o seu interesse especial, como mais que uma vez se escutou, nas palavras proferidas pelo próprio director, Brigadeiro Batista de Carvalho.
   Mas João Gonçalves diz mais no seu discurso de homenagem ao grande Mestre Instrutor:
      “Por isso, o serviço, firme de um auxiliar inteligente, observador, cuidadoso e insatisfeito, como é e tem sido o Mestre Assis, representa um valor insofismável”.
   “Talvez por eu ter, por temperamento, posto ao serviço desta Fábrica o meu máximo esforço, durante os curtos anos que por aqui mourejo, como ele sabe melhor que ninguém, tenho podido avaliar bem a profundeza da grande obra que aqui tem feito o Mestre Assis”.
   E para terminar as suas palavras, o Mestre Geral João Gonçalves, que entrara para a Fábrica em 1938, manifestou toda a sua gratidão, tudo aquilo que aprendera com o Mestre Instrutor e inclusivamente os incitamentos que dele recebera, para prosseguir, não esquecendo as dificuldades passadas com outros camaradas que tinham trabalhado na Fábrica.
     Passaram pela grande empresa do Estado, pessoas que não se limitaram à comodíssima situação de serem, como se costumava dizer, ‘muito obedientes, mas pouco diligentes’, procurando bem pelo contrário, estudar de noite e dia, infatigavelmente para terem uma preparação e uma actuação de acordo com as responsabilidades técnicas.
     “Mais do que isso”, acrescentou, “a vida das pessoas que têm de trabalhar, sem hesitação, sob as suas directivas, principalmente quando se tratava da montagem, fabricação ou verificação de novos trabalhos ou da simples modificação mais conveniente destes”.
      O Mestre Assis Mafra reconheceu todas estas alterações, estudou, trabalhou conjuntamente com os operários no sentido de melhorar os serviços, conseguindo-o sempre, porque o que ele metia em mente tinha de concluir e foi precisamente essa sua maneira de ser que o guindara a tão alto posto dentro da Fábrica, mesmo sabedor que para tal, trabalhando a gosto, teria forçosamente de ocupar a grande maioria do tempo que lhe estava destinado a um merecido descanso, abdicando dele e insistiu continuando ao serviço da Fábrica, até atingir mais de sete décadas de profundo e dedicado serviço.
   Por tudo isto foi alvo de uma justa e significativa homenagem da administração que teve eco em toda a imprensa fechada da época, mas os 59 anos de serviço, chegaram ao conhecimento das mais altas esferas do Governo e isso não poderia passar ignorado, pois servia e de que maneira naquela época, aos interesses ditatoriais de António de Oliveira Salazar, que se galardoava com estes feitos e jamais podia negar-se a que a imprensa fizesse eco de tão importante facto.
    Nesse tempo estas coisas aconteciam sem se pensar em grandes interesses políticos, pois as pessoas estavam emaranhadas nos seus serviços, lutavam por eles e então quando era deles que dependia sucessos, eram esquecidos os verdadeiros interesses do Estado, no que respeitava a propaganda política, ressoando para o exterior, embora se soubesse que outros, esses sim, bem interessados nessas ocorrências, aproveitavam-nos bem à revelia dos visados.
     Isso aconteceu com Assis Mafra que bem sabia que dentro da sua fábrica, apesar de tudo, havia gente que conspirava contra a ditadura de Salazar, mas ele nunca interferiu nesses assuntos, porque não lhe diziam respeito, pois foi sempre um homem fechado no seu serviço, no seu bem montado laboratório, com as suas experiências e por vezes passava completamente ao lado desses casos que acabaram por ser bem badalados, como foi o ocorrido com Felner Duarte, Júlio do Rego e António Silva vulgarmente conhecido pelo “Pirata” nos anos trinta, mas isso para ele eram assuntos que não lhe diziam absolutamente nada, embora lamentasse a má atitude desses bons operários e que acabavam por ser despedidos sem obterem afinal, o sucesso que desejavam.
   Assis Mafra, dada a sua grande dedicação ao trabalho foi um justo merecedor da grande homenagem que lhe foi feita, reunindo operários, superiores, direcção e administração.
    Foi-lhe concedido o galardão, “Grau de Cavaleiro de Ordem de Mérito Industrial e Agrícola”, numa cerimónia presidida pelo general Peixoto e Cunha, administrador Geral do Exército, estando ainda presentes o Brigadeiro António Batista de Carvalho, tenente coronel António Cardoso Pinto Rebocho, antigos directores da Fábrica.
    A cerimónia foi assistida ainda por muitos oficiais e no período dedicado aos discursos, falou em primeiro lugar o director que, depois de ler o louvor que publicou quando da reforma do homenageado e a portaria que o condecorara, apontou a sua vida como um grande exemplo de honra, dedicação e fidelidade, isto acrescido do facto de Assis Mafra trabalhar num dos mais arriscados e valiosos serviços da Nação, como sempre foi considerado o fabrico das pólvoras.
    O capitão Oliveira Pinto também falou, engenheiro da secção industrial, o Mestre João Alberto Gonçalves em nome do pessoal fabril e Henrique Didelet, pelo pessoal administrativo.
  Finalmente Francisco Assis Mafra, bastante emocionado pela grande homenagem que lhe fora prestada, proferiu as suas palavras.
   “Sinto-me muito penhorado pelo interesse que V. Exa. meu General, tem dedicado à homenagem que me está sendo prestada e bem ligado à gratidão, pela carinhosa presença de V. Exa. a honra deste singular momento da minha vida.
    Não me julgo com o direito de procurar no meu passado, o motivo ou motivos, que levaram os meus superiores a penhorar-me com tão honrosa homenagem, mas a compreensão desse dever, não me exclui, como é humano supor-se, de intimamente desejar inferir.
   Passado em revista todo o meu passado, apenas ressalta ao meu espírito, a cortesia de que, procurei sempre com persistência cumprir o melhor que fosse possível, mas como esse procedimento não é voluntário, mas imposto por dever a todo o servidor do Estado, a minha consciência tacteia um pouco, em aceitar que ele pudesse dar motivo a tanto.
      Relembro ainda que durante a minha longa carreira profissional, em comum com os meus colegas, sempre neles vi cooperação igual no desejo de cumprir.
     Quanto ao mais, as malhas da fieira profissional por que tínhamos de passar, estava sujeita, sensivelmente, aos mesmos limites, logo, sou obrigado a reflectir e a reconhecer que esta carinhosa homenagem dos meus ilustríssimos chefes é, igual ao término da minha vida, ainda uma nobre lição, como tantas outras que pela vida fora recebi, mostrando-me, quanto devo à natureza por me ter brindado com uma resistência física, que infelizmente a tantos outros lhes negou.
    Ainda como lição, eu sinto grande prazer, por ela me conformar, que não passou despercebida a minha constante atitude de procurar sempre evitar, que os meus chefes tivessem de impor-me o cumprimento dos meus deveres e até, quanto fui justo, em nunca fazer petições, confiando sempre e só à sua guarda, a defesa dos meus direitos.
    Dominado pela natural emoção de tão grande conforto, agradeço sinceramente comovido a V. Exa. meu General, meu Brigadeiro, meu Director, meu subdirector e meu Engenheiro, o quanto contribuíram para a homenagem de que estou sendo alvo, confessando-me intensamente grato por ela, pelas amáveis palavras de estima e consideração aqui dirigidas à minha pessoa e ainda por tantas e tantas atenções que me têm dispensado.
      Aos meus colegas e demais pessoal, muito lhes agradeço a lealdade com que sempre têm retribuído, a lealdade que para eles sempre tenho usado”.
      O Mestre Assis Mafra fora sempre um homem de profundo reconhecimento e esta homenagem assentou-lhe magnificamente a ponto de, protelar o seu serviço dentro da Fábrica por mais uns anos por solicitação da administração, acabando por continuar o seu serviço com a gerência dos belgas que viriam a adquirir parte da Fábrica em Novembro de 1951, mas aqui neste período, o grande e inteligente Mestre, salvaguardou os interesses nacionais e escondeu sempre todos os segredos de fabrico das pólvoras, que antes tinham sido bem abertos a todos os operários no sentido de melhorias, mas que a partir daquele momento, ele era sabedor que a nova empresa, apenas ali estava com segundos sentidos, e estes passavam obrigatória e denunciadamente por obter resultados comerciais e até utilizarem uma certa velhacaria, acabar com a sua pólvora negra e introduzir no mercado nacional que lhes parecia excelente e oportuno, as pólvoras brancas que eram originárias da Bélgica, de onde eram oriundos.
      Foi isto que alguns novos funcionários, que não conheceram bem o grande Mestre, nem sequer souberam dos seus importantes feitos em anos anteriores, sempre criticaram, afirmando que “ele é tão egoísta que prefere levar os segredos da pólvora para a cova” mas Assis Mafra sabia e bem o que fazia.
    Um homem que se habituara ao rigor de colocar operários com conhecimento dentro das oficinas de pólvora, sim porque era ele, conjuntamente com outros profissionais, que ministrava o rígido e complexo exame de aptidão, para que pudessem lidar com pólvoras e promovessem a maior segurança na Fábrica e agora via com uma certa tristeza que esses rigores tinham sido postos de lado, uma vez que eram admitidos funcionários sem os mínimos conhecimentos, sem obterem a devida e necessária preparação para aquele serviço, só porque a II Guerra Mundial deixara a Fábrica praticamente com os seus “stoks” vazios.
      Um homem que sempre pautara o seu serviço, pela confiança que depositava em quem trabalhava dentro de uma oficina e agora ver com os seus próprios olhos qualquer pessoa nela entrar sem conhecimentos, debilitada fisicamente, sujeita, inadvertidamente, a perder a sua vida e causar a morte dos outros camaradas, só porque era preciso produzir, acabara por se deixar conduzir pela trivialidade quotidiana e esperar que a natureza se encarregasse de o mandar de novo para sua casa, com o devido conforto de uma nova reforma, apenas dedicando, lá bem no fundo da sua já gasta mente, à actual e estranha administração, a seguinte ideia, “quem me comeu a carne, pois agora que roa os meus ossos”.
       E o Mestre Instrutor Francisco Assis Mafra, filho de José Rodrigues Mafra e Maria Luísa Canela, morador em Queluz de Baixo, acabou por sair da Fábrica praticamente na véspera de sua morte em 7 de Julho de 1960, com 82 anos de idade, o que terá causado um certo espanto, pois todo o país tinha assistido, inclusivamente o Primeiro Ministro António Oliveira Salazar, ao facto invulgar, inédito em Barcarena, de um homem que entrara em criança para a Fábrica e saíra dela quando os instintos lhe deram a garantia que dias depois iria desaparecer para sempre e nunca mais ninguém viria a saber os grandes segredos do fabrico da pólvora em Barcarena.
      Um, dos seus filhos, o José Rafael, mandou construir e adornar a sua sepultura no cemitério de Barcarena, onde ainda hoje se encontra em eterno repouso”.

(a)   Trabalho executado pelo autor baseado nos seus conhecimentos, na qualidade de companheiro de trabalho do visado, assim como recolhas efectuadas junto dos arquivos particulares de Filinto Silva, pai do autor, que com Assis Mafra trabalhou durante mais de quarenta anos, sendo inclusivamente um grande amante deste consagrado técnico em fabrico de pólvoras negras.
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