segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Antigamente o Carnaval em Tercena era muito mais alegre

Fernando Silva
O Carnaval e o
“Enterro do Bacalhau”

    O Carnaval é, apesar de tudo, ainda uma das festas mais festejadas no nosso país e em Tercena ele sempre mereceu uma especial atenção por parte do seu povo, que logo bem cedo iniciava a folia, entrando depois numa fase mais séria de meditação e recolha por parte do povo, até se atingir a Semana Santa, com as festividades religiosas pascais.
   O Carnaval é um período de festas regidas pelo ano lunar que tem suas origens na antiguidade e recuperadas pelo Cristianismo que começava no dia de Reis “Epifania” e terminava na “4ª feira de cinzas”, às vésperas da Quaresma.
     O período do Carnaval era marcado pelo “adeus à carne”, ou “Carne nada vale”, dando origem ao termo Carnaval.
    Durante o período dedicado ao Carnaval havia uma grande concentração de festejos populares, pois cada cidade brincava a seu modo de acordo com os seus costumes tal qual acontecia em Tercena.
   O Carnaval moderno feito de efeitos e fantasias, é produto da sociedade vitoriana do século XIX, onde as cidades de Veneza e Paris foram os grandes modelos exportadores da festa carnavalesca para o mundo inteiro.
   Cidades, como Nice, Nova Orleans, Toronto, Rio de Janeiro, inspiraram-se no Carnaval francês para implantarem as suas novas festas carnavalescas.
  Actualmente o Carnaval do Rio de Janeiro no Brasil, é considerado um dos mais importantes desfiles do mundo, mas em Portugal existe uma grande tradição carnavalesca, como ainda hoje acontece com as festas levadas a cabo em Podence, Ovar, Loulé, Sesimbra, Rio Maior, Torres Vedras e Sines, com um destaque muito especial para o de Torres Vedras, por ser o mais antigo e reconhecido como o “Carnaval mais português de Portugal”, que se mantém popular e fiel à tradição, rejeitando o samba e outros estrangeirismos juntamente com o Carnaval de Canas de Senhorim com perto de 400 anos e tradições únicas, como os “Pizões”, as ”Paneladas”, “Queima do Entrudo”, “Despiques” e outras coisas.
     Entre uma época e a outra, existiam estes dias eufóricos em que as pessoas se soltavam, tomavam um ar libertino, feliz, de características lúdicas e etnográficas, dando graças às novas colheitas, bendizendo a fertilidade e imediatamente atingindo o auge, começando bem cedo, com comemorações efusivas ao ser anunciado o dia de S. Vicente.
      As pessoas davam imediatamente, largas à sua imaginação e ao seu ávido desejo de brincar, começando a festejar o Entrudo, com empulhações populares, “No dia de S. Vicente levas o cagalhão no dente”, entre muitas outros ditos que a ninguém ofendiam.
      Os mais foliões começavam também a juntar nos seus quintais, montes de coisas velhas, cacos e latas para atirar pela calada da noite à porta de pessoas conhecidas e amigas, sinal bem evidente das diabruras que iriam suceder-se ininterruptamente até ao dia em que se efectuava o “Enterro do Bacalhau” e finalizavam oficialmente a época grotesca do Carnaval.
  A colectividade tercenense preparava os seus festejos e o Teatro era a principal atracção, pois representava-se sempre uma comédia e um acto de variedades onde se criticava, as pessoas do lugar e isso era sempre esperado com grande expectativa, pois se havia quem não gostasse, outros adoravam que falassem de si e até ficavam zangados se porventura em algum ano, nada comentassem de sua vida.
   Os bailes sucediam-se desde o sábado magro, e na semana do Carnaval, iniciavam-se no sábado gordo depois da récita e só terminavam na 4ª feira de cinzas, depois do “Enterro do Bacalhau”.
     No domingo gordo, as pessoas juntavam-se logo a seguir ao almoço na sede da colectividade e preparavam o grande desfile carnavalesco, que começava sempre na Estação de caminho de ferro, onde se ia esperar os reis que viajavam sempre de comboio, entrando na estação de Queluz e eram esperados na Estação de Barcarena, com grande pompa e circunstância, levados depois num grandioso cortejo, organizado e preparado pelo Costa Ramos que era o grande animador desta festa carnavalesca.
   Uma camioneta adornada, com trono, esperava suas majestades, que depois, em andamento lento, percorria todas as artérias de Tercena até chegar à colectividade, com os reis sempre efusivamente aclamados, com serpentinas, papelinhos e os famosos saquinhos, cheios de serradura, que se atiravam uns aos outros.
     Depois do baile da tarde, seguia-se a sua continuação à noite e na segunda feira à noite, tinha lugar o baile trapalhão, onde as máscaras apareciam de forma grotescas, de cara tapada, que vulgarmente se chamava “mastronços” e antes de entrarem no salão, tinham de a retirar no gabinete da direcção, para serem definitivamente identificados.
    Nunca se detectara qualquer outra situação, pois toda a gente queria apenas brincar e raramente utilizava o Carnaval para outros fins.
    Na terça feira à tarde, havia de novo corso, mas já com os reis de Carnaval a saírem da colectividade para darem mais uma volta pela parte do lugar ainda não visitada, recolhendo ao salão para toda a gente se divertir no alegre bailarico.
    O baile da noite, apesar de cansativo, já era feito com enorme saudade, pois adivinhava-se o fim da folia e isso era desmoralizador, principalmente para os jovens que adoravam o Carnaval e alguns tinham deixado em mãos atrevidos namoricos, pois contrariamente à práticas normais, só sentiam coragem de desabrochar romanticamente nestas alturas do ano e era sempre nesse baile que esperavam suas desejadas respostas, se sim ou não eram correspondidos.
     No dia seguinte, logo após o almoço, o Farinha, que era o fogueteiro da terra, preparava o boneco que iria animar o “Enterro do Bacalhau”, com roupas oferecidas e bonitas, enchendo-o de palha, muitas bombas e rabichas, o que galvanizava o povo que, depois das nove horas se juntava à porta da colectividade para com ele, correr de novo o lugar, para finalmente ser queimado nos terrenos ao lado da colectividade.
  A Orquestra de Tercena acompanhava o cortejo, tocando músicas adequadas e depois, no final havia sempre uma hora de baile, para satisfazer os mais inconformados com o fim do Carnaval e começava-se logo a pensar na festa do ano a seguir.
    Mas o “Enterro do Bacalhau” tinha características muito especiais, já que em outros lugares da freguesia, como em Leceia, o boneco era colocado sobre um burro, que corria os caminhos do lugar e depois, mesmo lá no alto, no famosos moinho do Outeiro, debruçado sobre Barcarena, os mais foliões e atrevidos, soltavam quadras, ditas em voz bem alta, por forma a que as pessoas da sede da freguesia as ouvisse distintamente.
    E então, simulavam matar o burro, e oferecendo as partes esquartejadas ao povo de Barcarena, dedicando-lhes quadras ou simplesmente versos, às pessoas mais influentes e conhecidas, como por exemplo:
  “A tripa cagueira é para o Miguel Nogueira”
 “A coisa do Bicho, vai inteirinha para o Cochicho”
 ” A orelha vai servir e bem o Zé Azelha”,
 “Da pata esquerda, o artelho, é para o Zé Vermelho”,
 e assim sucessivamente, até, simbolicamente o animal ficar reduzido a nada, só que o burro era intocável, pois apenas queimavam o boneco que andara sobre o seu lombo, pois o animal teria de seguir a sua vida.
     Era nesta época extraordinária que se aproveitava para os de Leceia criticarem, as pessoas conhecidas de Barcarena e também do lugar, pois davam início à função soprando nos búzios que ecoavam pela montanha a baixo, obrigando a que todos tomassem redobrada atenção, porque sabiam que iriam escutar coisas inconvenientes, insultuosas e sobretudo aqueles que tinham pecados graves, conflitos, como questões de infidelidade, problemas nos empregos, questões relacionadas com os bombeiros ou outras instituições, tomavam melhor atenção, porque sabiam de certeza que iriam escutar quadras alusivas às suas irreverências.
     Em Tercena, essas críticas eram divulgadas apenas durante a representação teatral, mas houve um ano em que o Grupo Recreativo de Tercena se excedeu, com uma arrojada organização.
      Em 1961, Fernando Silva concebeu um grande cortejo carnavalesco, com um enorme número de carros alegóricos, na sua maioria carroças, automóveis adaptados e outras viaturas, que causou sensação, chamando a Tercena muitos forasteiros nesse ano.
   Os carros foram ornamentados na sede do Grupo Recreativo de Tercena e outros mais sofisticados foram montados num grande armazém que havia no Bico, pertencente à Fabrica da Pólvora e com a devida autorização.
  Foi um grande espectáculo, onde praticamente toda a população se mobilizou naquele sentido e de facto causou um enorme êxito, porque a propaganda foi bem feita e vieram até Tercena, algumas centenas de pessoas atraídas pela fama do seu Carnaval.
   Foi pena nunca mais se ter organizado uma iniciativa idêntica, mas na realidade foi um Carnaval muito cansativo, dispendioso, e como tal, difícil de encontrar continuidade e isto por não haver naquela altura qualquer apoio da Câmara Municipal ou da Junta de Freguesia, pois foi o GRT de parceria com os foliões, que custeou todo o trabalho.
     Falando um pouco destas tradições do passado, o “Enterro do Bacalhau”, constituía uma resposta vingativa ao “Enterro do Galo”, que se fazia em muitas outras localidades do país, pois por todo o lado, e com pequeníssimas diferenças, o “Enterro do Entrudo”, ou o nome que entendessem dar, já se organizava na 4ª feira de cinzas.
      A tradição já vinha dos tempos memoriais de Cristo, com o “Enterro de Judas”, o         discípulo infiel de Cristo e como tal, o seu enterro terá sido, uma verdadeira brincadeira de Carnaval, afinal por ter sido tão ingrato e injusto com Jesus.
  Desde esses tempos que se simboliza esta paródia, depois do Carnaval e antes de se atingir a Páscoa, por muitos lados e depois de muitos séculos se terem passado, esta brincadeira tomou aspectos sérios, já que em muitos lugares até missa se realizava.
   O “Enterro do Bacalhau”, ainda em épocas mais contemporâneas, simbolizava o “adeus à carne”, e escolhido o “fiel amigo”, acabando por rivalizar com os talhantes que assim se viam postos de lado.
     Esta era uma brincadeira, onde o povo de associava sem se aborrecer, havendo mesmo uma enorme compreensão nestas paródias e então, como o poder organizativo era muito maior e massivo, juntavam-se as instituições militares locais, disponibilizando cavalos, cujos soldados portavam instrumentos de sopro, abrindo o cortejo, seguindo-se os réus, os carrascos, os juízes, advogados, as testemunhas e todos aqueles que simulavam, defender o bacalhau, que barafustavam em verso, contra os que lutavam pela carne e que tinham sido depostos.
    Brincadeiras que constituam um grande espectáculo etnográfico, e que hoje se procura repor, mas com grande dificuldade e isto por as pessoas não encontrarem grande disposição devido à vida atribulada que levam.
   Criavam um enorme bacalhau feito em cartão e havia sempre uma grande emoção com diálogos pré estudados entre marçanos, talhantes, criados, não faltando as carpideiras que gritavam desesperadamente e toda esta gente conspirava ao longo do percurso que avançava barulhentamente iluminado por archotes e ao som da música.
   Chegados ao local do juízo final, o bacalhau era queimado, noutros locais enforcado e aqui derivava de lugar para lugar, pois se uns recriavam o enterro desta maneira, outros arranjavam mesmo um caixão, onde levavam dentro um boneco, com figuras mascaradas de padre, bispo e outras personagens da igreja que junto ao cadafalso, declamavam poemas alusivos às figuras mais importantes da terra, tecendo criticas, algumas até bem duras, mas jamais divulgando o nome dos seus personagens, só que as pessoas sabiam a quem se referiam e a chacota era enorme, ao mesmo tempo que outros repudiavam.
     Afinal estas pessoas, alvo de crítica, pensavam que os seus casos tinham sido bem guardados e afinal eram declarados em plena praça pública, o que os deixava deveras acabrunhados, mas remetendo-se ao silêncio, pois ninguém dava parte fraca e como tal não motivava nenhuma zanga.
      Todas estas brincadeiras, valiosas tradições do nosso povo de antanho, não passam hoje de recordações do passado, porque ninguém se atreve a organizá-las, ou por falta de tempo, de disposição, ou receio de represálias, mas o que está mesmo provado é que as modificações políticas do nosso país, obrigaram a que tudo isto fosse remetido a um silêncio sepulcral, que nos entristece, primeiro por se acabar com coisas que muito significado tinham pelo facto de serem remotas e depois, pela estúpida incompreensão das pessoas não admitirem ser parodiadas, mesmo sabedoras de que foram verdadeiros réus, que seus casos foram divulgados e levados ao conhecimento público.
   As reacções hoje a todas estas brincadeiras, são diversas e podem até levar a grandes conflitos, ferir susceptibilidades e então para se evitar desavenças, acabam por ficar apenas na ideia dos mais idosos e lamentar-se tristemente, o quanto é diferente o Carnaval dos nossos dias.
    O Carnaval agora limita-se ao cortejo de crianças das escolas, bailes nas colectividades e algumas iniciativas de maior monta, como os corsos fechados e de carácter comercial, com as máscaras cada vez a uma maior tendência ao nudismo, ao erotismo e sem aquele valor grotesco, humano e fantasioso como antes.
     Quanto ao “Enterro do Bacalhau”, noutros locais, também conhecido pelo “Enterro do Galo”, “Enterro do Entrudo”, todos eles mantém a o mesmo significado, mas infelizmente marcado e adulterado em relação ao passado, devido ás mesmas razões, a falta de entendimento e estreita compreensão entre os seres humanos.

&&&

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Santa Bárbara Padroeira dos Polvoristas

PREFÁCIO SOBRE SANTA BÁRBARA, A FESTA E O RESTAURO DA IMAGEM
    Barcarena, foi sempre uma terra dedicada a Santa Bárbara por ela ser a grande padroeira dos polvoristas que trabalhavam na Fábrica da Pólvora.
     A imagem esteve sempre presente naquela unidade fabril, contudo só passou a ser festejado o seu dia, 4 de Dezembro quando entrou para a Fábrica uma gerência belga, porque de resto nunca ninguém dera grande importância àquele bloco de gesso que ali se encontrava perto do armazém geral da Fábrica, sem nunca ter sido venerado, ou mesmo preservado, pelo menos nos anos antecedentes à entrada da nova direcção.
    O seu director, Armand Simon Jonet, belga muito religioso, impôs que esse dia, fosse sempre festejado e a santa venerada dando uma missa campal, promovendo um almoço e a possibilidade de um dia festivo passado de forma agradável aos empregados, nas instalações da mesma.
    Historiando essa época, recordamos, não só com a grande festa que se fazia, seus acontecimentos, como também as razões que levaram a que a imagem, encontrada abandonada nas instalações após a mesmas terem deixado de funcionar, tivesse sido recuperada, só que surgiu a ideia de que terá havido duas imagens, antes da nova gerência ter iniciado os seus trabalhos (1951), só que apenas apareceu uma única, que acabaria por ser restaurada uns anos depois, encontrando-se agora, altaneira no Museu da Pólvora Negra existente nas instalações do renovado espaço de lazer e cultura, em que a lendária fábrica de pólvora de Barcarena, se transformou.
    São esses dois trabalhos que apresentamos, “A Festa de Santa Bárbara no dia 4 de Dezembro” e o “Restauro da Imagem de Santa Bárbara”.

Santa Bárbara Padroeira dos Polvoristas

A FESTA DE “SANTA BÁRBARA” NA FÁBRICA DA PÓLVORA DE BARCARENA

      Na Fábrica da Pólvora de Barcarena, após a entrada da nova gerência belga, em Novembro de 1951, o novo director Simon Armand Jonet, por ser uma pessoa muito religiosa, criou a festa dedicada a Santa Bárbara, no dia 4 de Dezembro, para que o pessoal se encontrasse e manifestasse a sua fé, apelando à Santa à desejada protecção.
 Ele também tomou essa atitude, depois de saber que os trabalhadores de Barcarena, não eram muito dedicados à igreja e talvez no sentido de os habituar e também para dar satisfação a muitos outros que, ao invés, gostavam da religião, criou a festa de Santa Bárbara dentro da Fábrica, com missa quase obrigatória para todos, embora se soubesse que nem toda a gente a ela assistia.
   Também é verdade que nunca se tinha comemorado aquela data, dentro da Fábrica, contudo constituiu uma grande novidade para todo o pessoal, que nesse dia, raramente faltava, pois para além do convívio com os seus camaradas de trabalho, havia sempre uma salutar troca de assuntos e sobretudo recordava-se os velhos amigos, muitos já desaparecidos, aproveitando-se o almoço oferecido pela direcção, que era sempre bastante diferente daquele que se comia ao longo do ano no refeitório.
     Só isso era uma inequívoca razão para não se faltar, pois a vida estava ainda muito difícil, pois a II Guerra Mundial tinha terminado há escassos anos e as pessoas começavam agora a organizar melhor as suas vidas e depois também tinham receio que a sua ausência fosse notada e por isso, pusesse em questão o seu emprego.
    A primeira festa em honra de Santa Bárbara realizou-se em 1953, depois da entrada em funcionamento da Companhia de Pólvoras e Munições de Barcarena, e a mesma teve lugar no espaço fronteiriço à garagem, logo a seguir ao portão de entrada do reduto sul .
     Foi aí que o padre João rezou missa, pela primeira vez num espaço ornamentado pelo falecido Artur Costa Ramos, que passaria a ser chamado todos os anos para ornamentar o improvisado altar, decoração que era sempre muito louvada pelo esmero aplicado por aquele profissional.
    A primeira ficara muito bem, e muito especialmente a esposa do Director da Fábrica Madame Jaqueline ter manifestado o seu encanto pela decoração apresentada, o Costa Ramos passou a ser uma pessoa solicitada, quer para aquela finalidade, quer até para a realização dos funerais das vítimas que se viriam a registara em explosões durante o seu mandato.
     Costa Ramos era armador fúnebre e como o Filinto Silva, empregado administrativo da Fábrica o conhecia bem, das suas iniciativas na colectividade de Tercena, aconselhou a direcção no sentido dele executar aquele trabalho e o futuro ficou garantido, daí que tivesse sido sempre ele a ornamentar os espaços onde se realizava a missa, matinal.
  Dois anos depois, o altar foi adaptada no interior de uma oficina junto à secção de pesagem de pólvoras, precisamente no local onde em 1933 tinham morrido uns tantos empregados e nesse ano, a missa teve um significado muito especial, bem revestida de emoção, pelo menos para os mais antigos, pois recordaram-se e bem, o quanto tinham sofrido aqueles companheiros, uma vez que não morreram no acto da explosão, mas sim por falta de socorro, já que as portas da oficina, erradamente abriam para dentro e com o atrito da explosão, os lixos provenientes acabaram por se acumular junto à porta de saída, impedindo-a de se abrir e os homens acabaram por morrer queimados pelas chamas.
    Foi muito doloroso para os que estavam do lado de fora, porque ouviam as suas arrepiantes súplicas para que os salvassem e tudo foi tentado no sentido de se abrir as portas, mas nada foi possível para que as mesmas se escancarassem, até que morreram com as unhas cravadas na madeira, como depois se viria a verificar.
     As festas dedicadas a Santa Bárbara juntavam sempre um grande número de empregados, conjuntamente com os administradores e directores, pois esses nunca faltavam, reunindo-se depois em reforçado almoço na cantina do pessoal.
  Houve anos em que Fernando Silva, dedicado ao teatro na sua colectividade, realizava espectáculos, de pouca duração, e isso também teve alguma importância, pois a componente cultural juntava-se à festa e esta tinha nesses anos, um maior ênfase.
   Quando a Fábrica deixou de pertencer à administração belga, passando a ser governada, já nos seus últimos anos de existência, pela administração agora a cargo da INDEP – Indústrias Nacionais de Defesa E.P., a festa foi esquecida, contudo depois daquela unidade fabril ter sido adquirida pela Câmara Municipal de Oeiras, e ficar livre dos perigosos fabricos de explosivos, Isaltino Morais revitalizou aquela reunião consagrada a Santa Bárbara em 1988, e convidou os antigos empregados a reunirem-se naquele dia e assim tem acontecido até aos dias de hoje, pese embora nestes últimos anos seja a Junta de Freguesia de Barcarena a tomar conta desta importante iniciativa, pois bem se reveste de uma acção social, para que os velhos funcionários se possam encontrar, conversar e afinal recordar as suas histórias enquanto foram empregados.
      É feita uma romagem ao cemitério de Barcarena, com deposição de flores nas campas dos falecidos em sua honra, e depois na Fábrica da Pólvora, segue-se o almoço de confraternização, mas notando-se que, de ano para ano o número de operários tem diminuído, facto que se considera normal, pois o peso da idade e o passar dos anos, não se compadece da vontade de cada um e é raro o ano que não se dê pela falta de alguns funcionários antigos, por terem entretanto falecido.
  A festa dedicada a Santa Bárbara foi por isso sempre considerada um acto de solidariedade para com as vítimas das explosões, e um dia socialmente vivido, com os antigos funcionários, aqueles que ainda felizmente sobrevivem, para que a memória daquele importante local de trabalho não seja esquecida, embora se saiba que não há ninguém que ali tivesse trabalhado que não esteja marcado com o desaparecimento de um seu familiar e é neste aspecto que a reunião se torna mais importante, pois muitas das vezes é sobre esses desaparecidos que as conversas mais incidem, recordando-se os seus bons momentos e afinal a desgraça que obtiveram, pois no lugar deles, bem poderia estar qualquer um dos que ainda felizmente vivem.
     A fábrica que antes era detestada por toda a gente, mas louvada pelo pão diário que proporcionava a centenas de pessoas, hoje continua a ser recordada pelos seus maus momentos, aquando das terríveis e devastadoras explosões, facto que consideramos ser errado, porque afinal, dentro daquele estabelecimento fabril, também se passaram momentos agradáveis, não só com este dia de Santa Bárbara, mas com outros, porque as explosões nem sempre aconteciam e a vida teve de ser sempre vivida ao longo dos 448 anos de existência daquela unidade fabril.
&&&

Santa Bárbara Padroeira dos Polvoristas

SANTA BÁRBARA FOI RESTAURADA
 E JÁ ESTÁ NO MUSEU DA PÓLVORA NEGRA

     A escultura de Santa Bárbara foi recentemente restaurada, encontrando-se agora no museu da Pólvora Negra na Fábrica da Pólvora, sendo de momento uma das importantes peças museológicas daquele local.
  Santa Bárbara, que andou durante muitos anos a ser maltratada pelo abandono que lhe foi dado, esteve durante muitos anos num nicho     construído, no pátio, onde funcionava o armazém geral da empresa, precisamente onde se encontra actualmente o museu, mesmo junto à escadaria que dava para a casa do relógio.
  Depois, foi retirada desse nicho e foi então quando terá recebido mais maus tratos, provenientes dos efeitos do tempo, completamente ao abandono, contudo, segundo estudos e informações de pessoas antigas, a escultura terá sido concebida pela administração belga que entrou para a Fábrica em Novembro de 1951,já que algumas pessoas com quem contactamos sobre a sua origem, ninguém nos soube informar se a escultura já existia antes da administração dirigida por Armand Simon Jonet.
   Nós que assistimos pessoalmente desde sempre às manifestações religiosas no seu dia, 4 de Dezembro, promovidas pela administração belga, a escultura nunca foi utilizada nas missas campais que foram feitas nos anos cinquenta e sessenta.
   O decorador Artur da Costa Ramos, chamado sempre para promover as decorações das improvisadas capelas, quer ao ar livre, quer em oficinas antigas, onde se ministrava a missa de Santa Bárbara, aquela escultura, curiosamente, nunca fora utilizada e talvez devido ao seu tamanho, ao seu estado de degradação e elevado peso.
  A Santa, segundo os técnicos e estudos efectuados terá sido concebida em gesso com armação em madeira interior, no decurso dos anos 50 do século passado, contudo, mantemos algumas dúvidas quanto a essa ideia, pese embora tenham de ser respeitadas essas informações analógicas.
    Segundo Belazer Caetano Farinha que foi admitido na Fábrica da Pólvora em 1947, quando entrou ao serviço da empresa, garante que a escultura já lá existia, mas contrariando um pouco esta informação, Manuel Sena, ao ter entrado para a Fábrica em 1940, garantiu-nos que nunca se lembra de ver lá a escultura de Santa Bárbara, mas também é verdade, acrescentou a mesma fonte, que nesse período ninguém festejava esse dia do ano, (4 de Dezembro), actividade que só durante o “reinado belga” se iniciou.
  Belazer Farinha diz recordar-se haver duas santas, uma delas muito mais bonita e que parecia ter entre mãos uma casa junto ao regaço.
     “A Santa que eu conhecia na altura em que entrei para a Fábrica era uma escultura muito tosca, dando a sensação de ser muito antiga”.
  “Aquela estátua que eu me lembro de ver era muito anterior aos anos cinquenta, mas eu acrescento ainda que me lembro de ver uma outra imagem de Santa Bárbara que chegou a estar guardada no velho museu por debaixo da casa do relógio”, afirmou Belazer Farinha.
  “A Santa que agora foi restaurada não era a mesma, era aquela que eu me lembro de ver toda velha, ratada e quase não se percebendo que era uma imagem, mais parecendo um pedaço de gesso informe”.
    “Essa santa que eu me lembro também de ver, nada tinha a ver com a outra, inclusivamente era mais pequena, pois essa era uma coisa tosca e na minha opinião perdura ainda a ideia de que ela tinha uma casa entre mãos”.
   “De certeza que havia nos anos cinquenta uma Santa nova que estava guardada no museu, junto de uns quadros pintados pelo Albino Carpinteiro. Era aí que ela estava”, concluiu aquele antigo funcionário admitido em 1947.
   Contudo, e ainda em nossa opinião, a escultura poderia ter sido levada para a Fábrica no princípio dos anos cinquenta, adquirida em qualquer casa de velharias, pelo director da Fábrica, Armand Simon Jonet, já que ele e a sua esposa, eram pessoas excessivamente dedicadas ao catolicismo, e portanto ter sido concebida muito anterior àquela data, e isto porque Luís Seixas garantiu nos seus estudos inerentes ao respectivo restauro, que a mesma apresentava uma policromia evidente.
     Foi baseado nesses exames e análises, que foi decidido voltar a dar-lhe cores aproximadas, mas a grande verdade é que nos anos cinquenta, quando a mesma passou a ser observada pelo pessoal da Fábrica da Pólvora, a sua cor era branca, ou seja, aquela que identifica o seu principal produto de feitura, ou seja o gesso.
    Daí as nossas grandes dúvidas da escultura ter sido concebida nos anos cinquenta, mas sim muito antes, embora esta teoria venha contrariar um pouco as análises efectuadas quanto à época em que fora construída.
  A imagem de Santa Bárbara esteve guardada num armazém durante muito tempo e já após a Câmara Municipal ter adquirido a Fábrica, foi então alvo de restauro, encontrando-se agora bastante diferente, trabalho que se pode considerar louvável, pois a cor branca que sempre lhe conhecemos desde os anos cinquenta, foi trocada por cores próprias de suas roupas e tonalidades da pele, assim como as próprias feições da escultura ao serem retocadas, deram-lhe um visual muito mais agradável, parecendo-se bastante com a iconologia que se conhece daquela famosa santa que viveu no seio de uma família pagã, e que ainda hoje é o verdadeiro símbolo religioso dos polvoristas, artilheiros e a quem vale na crença das pessoas nos dias de trovoada.
    A Santa ficou agora, depois de ter sido dada todas as explicações sobre o moroso trabalho de recuperação pelo artista Luís Seixas, logo à entrada do museu num espaço preparado, bem enquadrado, valorizando assim muito mais o Museu da Pólvora Negra na Fábrica da Pólvora em Barcarena.

&&&

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Recordações da Infância

OS ARTISTAS AMBULANTES FILHOS DA POUCA SORTE
     Hoje há um mundo de diversões e formas de passar o tempo, que não existiam no passado.
   A televisão, os computadores, os telemóveis, enfim, não falando das muitas salas de espectáculos, cinemas, discotecas entre muitas outras coisas, que em tempos mais recuados, mais propriamente nos anos quarenta do século passado, até finais da década seguinte, eram novidades puramente desconhecidas do Zé Povinho.
   O povo metido nas suas aldeias, nos seus lugares, vivia do trabalho, e no intervalo recorria ás tabernas, às colectividades e aí entretinham-se com as actividades possíveis, normalmente jogando às cartas, dominó, ou à laranjinha, enquanto outros passavam os seus tempos livres aprendendo música e fazendo parte dos grupos de teatro.
    As crianças, essas, depois do cumprimento diário escolar, pouco ou mesmo nada possuíam para passar os seus tempos livres, ficando em casa, ou jogando à porta de sua habitação à malha, à “macaca” e outros jogos que conheciam.
    Outros faziam brinquedos com arame ferrugento, utilizavam as latas de conserva depois de vazias, imitando camionetas, carroças, porque nem dinheiro havia para se adquirir brinquedos modestos, quanto mais daqueles que se exibiam nas montras dos grandes estabelecimentos da capital, porque na terra, nada disso havia, a não ser coisas simples e baratas, praticamente sem terem algum interesse.
    No campo da diversão, então não havia mesmo nada, a não ser alguns espectáculos de quando em quando promovidos pelas colectividades e sempre à base das suas actividades, coisas que, muitas das vezes as crianças não entendiam nem apreciavam, acabando no colo de suas mães adormecidas, enquanto não acabasse a função.
     Mas havia épocas do ano em que a rapaziada mais nova se alegrava, galvanizava-se mesmo ao saber que tinha chegado à sua terra naquele dia, o homem do cinema.
    O animatógrafo, como se dizia naquela época, chegava ao lugar depois do almoço, escolhia o local para projectar os seus filmes à noite e a rapaziada ficava louca, não saindo daquele lugar escolhido atenta a todos os movimentos do grande animador que, corria o pais de lés a lés, para projectar os seus filmes, forma de ganhar a sua vida.
     Aparecia de tempos a tempos, para não “escaldar” a sua clientela, embora sabedor de que as pessoas gostavam de ver os seus filmes, pois por norma eram alugados por uma temporada e enquanto não passassem nas localidades mais perto da sua habitação, não voltava com novos, pois era cíclico e então de mês a mês aparecia, e também em função da clientela, se era ou não fértil, se valia ou não a pena voltar célere com novos programas.
    O cinema estava ainda pouco divulgado, pois só na capital é que já existiam casas próprias para os exibir e então eles corriam os lugares do país com as suas antiquadas máquinas, que funcionavam a carboneto, luz que fazia projectar a imagem na parede.
    Em Tercena esses ambulantes quando apareciam iam projectar os seus filmes junto à taberna do António da Rosa, na parede da casa da Margarida Pires, pois como estava sempre caiada de fresco, por o seu proprietário ser pedreiro e gostar de mostrar o exterior do edifício alindado, era ali o sítio ideal para a projecção e depois ficava totalmente resguardado do lado direito com o edifício, já que no esquerdo, passava a estrada, havendo o muro do quintal do “Lagarto”, merceeiro conhecido na terra, que fazia de assento para os mais idosos já que na estrada raramente passava uma viatura àquela hora da noite.
  Os filmes eram mudos e por norma eram de “cowbois”, passados no “Farweste”, o que a rapaziada adorava ver.
  A certa altura, o projectista, pedia sempre a uma pessoa que ele já conhecia de anteriores sessões, para passar a bandeja pelas pessoas com a finalidade de angariar alguns fundos e por norma era o “Mira” figura típica da terra, que morava ali perto e acolhia sempre toda esta gente infeliz que desta forma governava a sua vida, que ia junto das pessoas a pedir qualquer coisa.
    Eram sempre uns cobres que caiam na bandeja, mas ao cabo lá conseguia arranjar dinheiro para a sopa, ou para mais qualquer coisa, porque afinal, riqueza nunca ninguém conseguira arranjar com esta forma de vida, porque o povo não dispunha de dinheiro e dava apenas um, dois ou o máximo, cinco tostões, pois mais não tinha para poder desembolsar.
 Contudo, eram estas migalhas que alegravam o pobre homem, que prometia, no final da sessão, voltar breve com novos e empolgantes filmes, por norma a grande série do Cassidi, um “cowboy” famoso que a rapaziada gostava de ver.
     Durante a sessão, o “Mira” fazia os comentários, pois adorava estes momentos e como era bastante conhecido no lugar, era imediatamente eleito pelos presentes, para fazer os seus cómicos comentários, àquilo que estava assistindo e por vezes apoiado pelo projectista, que assim o deixava exibir-se, sabedor de que as pessoas tinham-no como um ídolo naquela matéria.
     Por vezes, quando as coisas não corriam bem, ou ele não entendia o que estava a ver, gritava “Mira manca está “ca” tranca”.
    Toda a gente ria e rematava sempre, “agora a rapariga foge, e casa com o cavalo”, o que dava origem a grandes gargalhadas.
     Passados tempos, intervalando com o animatógrafo, aparecia a família que se dedicava de forma modesta ao circo, quais filhos da pouca sorte que vagueavam de terra em terra, pois por norma, os pais faziam números mais simples, como de palhaços, enquanto que eles se dedicavam mais à parte gímnica, com a rapariga a exibir-se com exercícios mais rigorosos exibindo o seu corpo enfezado, mas ágil, contudo a cabra e o burro, sempre muito escanzelados por tanta fome terem passado na sua vida, também se exibiam de forma caricata, para poderem causar o riso, com o burro domesticado a zurrar, quando o dono lhe solicitava e a cabra a ter de subir com dificuldade os degraus do escadote, pois o animal fazia toda aquela ginástica difícil sempre a troco de qualquer coisa de comer, o que era satisfeito, logo que terminado aquilo que se desejava.
    Era uma família muito modesta, que dormia em tendas de trapo, já muito usadas, valendo muitas das vezes as pessoas que, reparando em tão grande miséria lhes dava de comer e sobretudo apoiava as crianças com roupas já usadas, que desde sempre, raramente iam à escola, obrigando-se a acompanhar seus pais naquela triste vida, ficarem a vida inteira analfabetas e terem de fazer alguma coisa de útil, para poderem requerer o estatuto de artistas da modesta companhia.
   Por norma era a família do “Mira” que recolhia as crianças na sua modesta casa, pois o circo mantinha-se por vários dias e à noite, como as pessoas nada tinham com que se entreter, depois do jantar, iam até ao local onde se exibiam, levando uma cadeira, ou um banco e repartiam sempre com aquela gente, mais por ajudar a pobre família do que recompensá-la pelo que assistiam.
     Era assim que as pessoas passavam as noites, por norma de verão, pois nada havia para entretenimento, e as colectividades nem sempre tinham festas e era nestes intervalos, por vezes bastante grandes, que as pessoas se divertiam, mas também aplicando a sua vertente humana, porque se tratava de gente, apesar de pobre, séria, pois não havia roubos, nem desacatos e assim calcorreavam de semana a semana por esse país fora, sempre em locais onde a pobreza imperava e como tal estes espectáculos modestos eram aceites.
    Nas grandes vilas e cidades, eles não se atreviam a entrar, porque por norma ninguém os aceitava e inclusivamente as autoridades repudiavam-nos e como tal, eles, sabedores dessas contrariedades, apareciam só nos pequenos lugares onde não existia autoridade e então exibiam-se à vontade, porque sabiam que tinham sucesso.
   Outras vezes surgiam em Tercena os ventrículos, que de forma mais remediada se apresentavam com os seus bonecos faladores, tendo sido famosos o “Sebastião” e o “Ambrósio”, que a técnica do artista, parecia pô-los a dialogar com ele.
   Ele fazia ambas as vozes e o público mais jovem não percebia, pensando que eram de facto os bonecos que emitiam sons.
    O “Sebastião” era o mais rufia e o “Ambrósio” o mais recatado e o artista perguntava ao “Ambrósio” o que mais gostaria de ser na sua vida.
     E ele respondia, “Eu ?... passarinho!...” e depois virando-se para o “Sebastião”, tido como refilão e mau, este respondia prontamente, Espingarda!...”
   O artista verificando tratar-se de uma resposta desenquadrada, questionava-o de imediato.
     “Para que querias ser tu espingarda, Sebastião?”
     E o boneco respondia de imediato. “Para matar o passarinho. Eu não o gramo!”
       As crianças riam, porque bem sabiam que ambos os bonecos não se davam bem, pois havia sempre algo que os deixava zangados e contrariados.
   Estes ventrículos, que tinham o condão de emitir as palavras sem que o público percebesse, eram bastante queridos em Tercena, mas viviam também das esmolas que o público lhes dava, só que muitos espectadores, ao aperceberem-se que alguém vinha pedir dinheiro, desapareciam só para nada darem, pois também é verdade que alguns por vezes nada tinham consigo, senão apenas a vontade de ver parte do espectáculo que era sempre efectuado ao ar livre, no largo do Lagarto, mesmo à porta da Emília do “Chorrinha”.
   Eram estes os grandes espectáculos que se registavam em Tercena, nos anos quarenta e parte da década seguinte, por isso, hoje, quando se recordam estas histórias, os mais novos, habituados a tudo, às maravilhas que lhes surgem através da televisão e dos grandes circos que pelo Natal se apresentam no país, quase não acreditam, porque não imaginam, o quanto se passava nesse tempo, tanto para os que tentavam por estes processos ganhar a vida, ou mesmo sobreviverem, como para os que assistiam, pois mal tinham dinheiro para a modesta refeição que se obrigavam a fazer diariamente, mesmo possuidores de trabalho certo no seu dia a dia.

&&&

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Tercena teve sempre um papel importante na cultura popular portuguesa

FILOSOFANDO SOBRE ANCESTRAIS CULTURAS
Tercena, foi sempre uma terra pequena e muito desinteressada dos assuntos fundamentais e que, sobretudo, deram origem à sua formação, e isso, devido ao baixo grau cultural do seu povo, composto por pouco mais de uma centena de pessoas que vivia em reduzido número de casas térreas e nalguns casais agrícolas da periferia.
    Não foi por acaso que um grupo de jovens na terceira década do século XX, pensou na criação de uma colectividade em Torcena, pois sabia que elas existiam, nomeadamente na vizinha Barcarena, onde fora criado um grupo de “soli dó” e mais tarde acrescido de uma corporação de bombeiros.
   Gente que trabalhava em prol da cultura, com a criação de um grupo de teatro, uma banda de música, uma biblioteca, formas de poder dotar os seus sócios e simpatizantes do conhecimento ligeiro das coisas fundamentais da vida, dos factos, mas sempre longe de lhes darem a conhecer as origens do seu povo e isto, talvez, por ignorância, não só por não serem curiosos, não falarem com os seus idosos, justificando-se hoje todas estas carências devido ao regime em que se vivia, depois da queda da monarquia.
   O povo esteve sempre fechado, agarrado à ditadura monárquica, sujeito às vontades reais e depois o esbanjamento que se fazia na corte e as carências do povo, deram origem a que este se soltasse e instaurasse a República Portuguesa.
   Daí em diante foi um desenvencilhar de ideias, de criação de novos hábitos, tendo sido fácil com tanta liberdade, chegar-se a uma razoável e preocupante anarquia em todos os aspectos e os processos levados a cabo para fazê-la extinguir, demoraram, atravessaram o período infernal da I Guerra Mundial, mas o povo queria mais, mas não sabia como alcançar os seus desígnios, e os governos, consecutivamente, não conseguiam por cobro na forma impensada do povo actuar, até que a mão de ferro, chegou ao poder.
      Salazar tomou as rédeas do país e com a sua chegada, tudo serenou e foi nessa altura que Portugal entrou no verdadeiro caminho.
   Acabaram-se as leviandades e o povo entendeu então que bastava de loucuras, aceitou o regime salazarista e até ficou satisfeito com os primeiros passos dados, as directrizes indicadas, os conselhos régios, o rigor, e foi quando então as famílias portuguesas, entenderam o novo trilho a seguir, adaptando-se às novas regras do país, só que a grande falta de cultura que grassava no país, consistia uma das grandes e preocupantes carências portuguesas, pois as pessoas estavam habituadas a trabalhar e pouco mais tinham para combater esse desgaste quotidiano e foi então que muitas localidades, inclusivamente Torcena, se dedicaram um pouco mais ao associativismo, criando os seus grupos, onde pudessem adquirir ideias mais concentradas, estabilizadoras e sobretudo criar locais onde se pudessem, não só divertir, como educarem-se e adquirirem mais conhecimentos.
   E foi assim que apareceu um grupo de jovens tercenenses que se propôs criar uma colectividade para tentar dar ao seu povo um pouco de mais conhecimento, sobre a cultura.
 Mas quem eram eles, para poderem avançar com um programa mais rigoroso, que difundisse mais e melhores conselhos, se afinal eles, também pouco mais sabiam ?...
    Embora possuidores da sexta classe, aconselhada naquela época, como mínimo de escolaridade mas não para toda a gente, porque as pessoas tinham de trabalhar devido ás grandes carências que reinavam em seus lares, o Grupo Recreativo de Torcena, foi o berço desses mais desprovidos, e o ensino do teatro, da música e afinal esses princípios culturais foram-se enraizando, ao ponto de se criar uma orquestra que evoluiu até aos anos cinquenta, tornando-se mesmo numa das melhores da área metropolitana de Lisboa, acabando por se extinguir depois, em meados dos anos cinquenta.
    Criou-se uma biblioteca que, curiosamente, era dirigida e bem, por uma pessoa analfabeta, homenagem seja prestada a Doroteia de Oliveira que a dirigiu durante algum tempo.
   Formou-se um grupo cénico que fazia representar gente minimamente letrada, conjuntamente com analfabetos mas cheios de vontade de aprender a ponto de saírem dele, grandes amadores teatrais e foi esse agrupamento que mais se difundiu nessa época, que, com o avançar dos anos, respeitando as alterações precoces impostas pelo ditador Salazar, obrigavam a que as pessoas cada vez mais se refugiassem nessas colectividades, esquecendo a política, deixando a turbulência em que se vivia uns anos atrás, tendo sido mesmo fundamental para se dar início à revitalização e reconversão do povo, que por estes métodos ia tomando conhecimento de alguns factos que até então lhe eram estranhos, mas jamais preocupando-se com as raízes da sua terra.
   Foi desse trabalho fecundo nos anos cinquenta que Fernando Silva surgiu, mercê do seu entusiasmo, da sua força de vontade e do grande gosto que nutria pela arte de Molière
    Nesse tempo o povo lembrava vagamente as histórias dos seus familiares, mas a vida, sempre a dureza da vida era uma constante preocupação, porque as regras governamentais iam sendo cada vez mais rígidas.
    Salazar, tentava acabar com os abusos e terá conseguido mas por um processo ditatorial, determinado, e sobretudo repressivo, que aos poucos ia aumentando e por isso revoltando as gentes deste nobre país.
  Isso terá sido uma das causas por que o povo se foi esquecendo do passado, porque o futuro mostrava-se pouco risonho e o presente era duro, bastante difícil mesmo, quase impossível de suportar e quem se atrevesse a tentar alterar a situação, era severamente castigado.
    A falta de estudos mais avançados terá sido fundamental, porque as pessoas limitavam-se ao seu dia a dia de trabalho. Casa, emprego e vice-versa e pouco mais, restando-lhe um ligeiro tempo ao serão para dedicar à sua colectividade e era essa forma de cultura, carente, debilitada, que ia adquirindo, não havendo, nem estudos, nem interesse para se poderem debruçar sobre o passado.
   E assim foi vivendo o povo agarrado e seriamente atento ao cérebro tendencioso e tenaz da ditadura salazarista, aos seus inconvenientes, às suas repressões e sobretudo, acabando por acatar, devido aos pesados castigos, às injustiças, às leis que saiam e protegiam apenas os senhores, os ricos, os capitalistas e os trabalhadores, a classe mais pobre, era desprotegida, limitada ao primeiro ciclo de escolaridade, que nem sequer era obrigatório pois a maioria, dadas as grandes dificuldades nos seus carentes lares se obrigava a faltar às aulas e como tal, limitando o seu futuro, sujeitando-se aos trabalhos de campo e pouco mais, levando uma vida de autêntico escravo.
  Salazar impôs muito camufladamente a lei do silêncio, do terror, do analfabetismo, colocando as pessoas bem longe até da vulgar cultura popular e mais não tinha acesso, pois as pessoas nasciam, viviam e acabavam por morrer sem saberem o passado da sua gente, dos seus avós, dos seus bisavós e afinal daqueles que tanto tinham labutado para que eles tivessem chegado até ali e como as histórias eram tão singelas, tão iguais umas às outras, que nem sequer valia a pena nelas falar, porque afinal, as suas vidas, eram iguais à dos seus antepassados, na óptica deles, vazia, sem nada de registo, apenas preenchidas de trabalho, sacrifício, com muitos lares repletos de fome, dor e morte e pouca ou mesmo nenhuma relevância acabavam por lhes dar, perdendo-se no decorrer dos anos e torturas da vida.
    Isto repetiu-se até, praticamente, ao final da primeira metade do século XX, altura em que algumas luzes se acenderam, algum modernismo apareceu, através do surgimento da televisão.
  O mundo visto pela TV, embora de uma forma censurada e manipulada pelo Estado português, foi sendo mostrado ao povo que, o recebeu de braços abertos, curioso, ávido, desconhecendo que tudo que passava pelo ecrã era rigorosamente seleccionado, preparado, mas que importava, se o que lhe era mostrado era sensacional, maravilhoso e de espantar ?...
  Ouviam falar disto e daquilo mas na maioria das vezes não se fazia a mínima ideia de como podia ser, acontecer, como era, como se vivia e isso, passado algum tempo, acabaria por ser fundamental para despertar a curiosidade das carentes pessoas, que viviam nesta Tercena e em todas as outras “tercenas” do pais, verdadeiramente de olhos vendados e ouvidos mocos ao exterior.
    A ditadura impusera severas condições, regras rígidas, mas afinal, os mais curiosos, alguns acabaram mesmo por ser severamente castigados, por tentarem passar clandestinamente ideias e mensagens de que afinal, havia mais, melhor e mais interessante para o povo tomar conhecimento, só que tudo isso era escondido, para evitar que o povo se revoltasse e os que eram descobertos nessa transmissão de ideias, era castigado.
     O Tarrafal que o diga!.... O Aljube, estava cheio de gente injustamente encarcerada.
     Felner Duarte de Barcarena, Joaquim da Silva de Leceia vulgo o “Pirata” e Júlio do Rego de Valejas, foram massacrados pela Pide, numa tentativa de darem esses novos conhecimentos considerados subversivos ao povo da freguesia de Barcarena e foi então que a guerra começou, numa luta tenaz, mas escondida, atamancada, injusta que levou muita gente à morte, à repressão, ao duro castigo que só viria a terminar em Abril de 1974.
     Por tudo isto o povo de Tercena cresceu, viveu e morreu sem saber verdadeiramente o real historial da sua ancestral gente, evidenciando uma total ignorância no respeitante ás suas origens, por todos estes atropelos, que duraram quase cinquenta anos, tendo sido mesmo a razão porque hoje muito pouca gente natural da terra, ignora a maioria das histórias ocorridas pelos sacrificados seres que se atreveram a viver neste torrão desde, pelo menos, o século XIII no reinado de D. Afonso III.
   Gente que não teve tempo, cultura, nem a mínima preocupação em deixar gravadas essas histórias, esses sofrimentos, esses grandes sacrifícios, porque a ditadura de Salazar fora grande, traiçoeira, pois se porventura alguém se atrevesse a escrever fosse o que fosse, sobre essa dureza de vida imposta aos portugueses, a partir dos anos trinta, tinha o devido e severo castigo e assim aqueles que resistiram e tiveram a felicidade de chegar aos dias de hoje, muito poucos são eles, limitaram-se a contar vagamente as histórias ocorridas apenas com os seus familiares e pouco mais, mas mesmo assim a perderem-se com o seu desaparecimento e acabarem por ser esquecidas, por nítido desinteresse dos seus seguidores.
   Poucas histórias ficaram, restando apenas aquelas que os curiosos, e atrevidos corajosos, que tudo gostam de saber, tiveram a arte e o engenho de as desencantar a essas bibliotecas vivas, que entretanto foram desaparecendo.
    São essas que se impõe levar urgente e insistentemente às novas camadas, felizmente evoluídas, com estudos, com preocupações acrescidas, agarrados a especialidades, devido à grande concorrência dos nossos dias e que hoje, esses estudos, são conhecidos por antropologia na sua vertente etnográfica, bem entrosada ao folclore dos nossos dias.
     Foi com grande dificuldade que essas histórias apareceram fidedignamente relatadas, estudadas com rigor, algumas mesmo descodificadas devido a essa fraqueza cultural dos entrevistados, muitos já de memória esquecida e são essas preciosas narrativas que irão prevalecer no futuro, constituindo, felizmente ainda, um vasto rol de assuntos em todas as áreas, para se poder valorar a valentia e coragem dessa gente que tanto sofreu para fazer o seu ciclo de vida, coisas que hoje são consideradas de mera importância, mas que naquela época constituíam gigantescos problemas e obstáculos duros de ultrapassar.
    Mas na realidade, mesmo após alguma insistência na sua introdução nas novas mentalidades, infelizmente outras preocupações ocupam o cérebro desses jovens e as narrativas do passado, a maioria, acaba por ficar perdida na poeira da longa caminhada, pois constatamos que, infelizmente, cada idoso que desaparece é uma velha biblioteca que se afunda no abismo da eternidade, levando consigo os seus conhecimentos e é pena que assim aconteça, pois o que parece interessar ao povo desta época e afinal as razões porque existimos e respiramos o ar que a natureza gratuitamente nos oferece, são, o futebol e a porca e falsa política de quem nos governa.

&&&