terça-feira, 29 de outubro de 2013

Era um agricultor de "Tercenas"


MANUEL ANTUNES O “TAPIÇO”
                      NASCEU EM “TERCENAS” EM 1865      
       Manuel Antunes vulgarmente conhecido em Torcena pelo “Tapiço”, terá recebido esta alcunha, por possivelmente ter sempre alguma coisa destapada e os amigos, ou familiares o chamarem constantemente, por graça, a atenção desse pormenor, contudo é desconhecida a verdadeira razão deste popular tratamento que tinha um dos muitos agricultores de Tercena do princípio do século passado.
   Nascido a 4 de Outubro de 1865 era filho de António Antunes e Josepha Maria, viveu durante muitos anos numas casas situadas na Avenida de Santo António em Tercena, mesmo por detrás da igreja dedicada àquele santo, na localidade pertencente à freguesia de Barcarena.
  Foi graças ao aparecimento da sua caderneta militar que  se soube  que  Tercena tinha tido uma outra nomenclatura, pois  em 1865, data de nascimento deste cidadão tercenense a terra chamava-se “Tercenas”, segundo consta naquele documento oficial..
   Pelo menos é o que consta na sua caderneta militar, ao tomarmos conhecimento do dia em que assentou praça, a 28 de Fevereiro de 1887 no Regimento de Infantaria, agora situado na Amadora.
   Era servente da Fábrica da Pólvora, onde quase toda a sua família trabalhara, pois desde familiares antigos aos que o sucederam, como seus filhos, Maria Augusta e Clemente Antunes, mais tarde, em outras gerações, Filinto Silva, Fernando Silva e outros, todos ali ganharam o seu pão, por se tratar de uma fábrica estável, não sendo muito famosa na remuneração aos seus empregados e ainda temerosa, uma vez que, de quando em quando sucedessem terríveis explosões, que vitimavam familiares e amigos, mas pelo menos proporcionava mais garantias sociais que o simples e também duro trabalho do campo.
    Manuel Antunes vivia do seu casal agrícola, pois criava vacas e outros animais, num espaço que mais tarde viria a ser dividido em partes, sendo dadas as suas casas aos filhos que nelas passaram a viver, cada um, constituindo a sua família, à excepção de Fortunato Antunes, que se estabelecera na capital, mais propriamente em Campo de Ourique, com uma mercearia que, recebera o nome da freguesia, “Barcarenense”, isto era mais uma prova do grande amor que todos os naturais da autarquia nessa épocas, dedicavam à sua terra natal.
    Manuel Antunes veio permitir que o seu bisneto, Fernando Silva dedicado às recolhas de sua terra, conseguisse descobrir que afinal a localidade onde a família vivia se chamava, na altura do seu nascimento, em 1865, “Tercenas”, pois bem o prova o seu documento militar, mas ignorando-se quando se terá registado essa mudança para “Torcena”, como se verificou, pelo menos tendo perdurado até 1928.
   “Tercenas”, em nosso ver está correcto, pois tratava-se de um facto verídico na localidade, pois existiam as tercenas, arsenais do exército que compunham o complexo fabril da Real Fábrica da Pólvora que António Cremer tinha criado em 1729, acabando por o rei D. João V, o “Magnânimo”, deixasse de atribuir alvarás a fabricantes de pólvora de credibilidade medíocre, que tinham os seus engenhos montados ao longo da ribeira de Barcarena e que muito frequentemente explodiam.
    Conhecem-se ainda indícios desse tempo no lugar do Bico onde se podem ver, embora agora bastante assoreados pelas constantes cheias, pequenos reservatórios, quais cadinhos gigantes, uma espécie de vasos onde se fundiam metais, mas naquele lugar serviam para misturar os componentes da pólvora.
    “Tercenas” terá sido o nome da localidade por alguns anos, e como era vulgar e fácil mudar o nome da terra sem grandes consequências ou trabalheiras burocráticas, Tercenas terá passado a dada altura, a chamar-se simplesmente Torcena.
     Já dizia o Mestre Instrutor Francisco Assis Mafra, uma grande sumidade da Fábrica da Pólvora de Barcarena onde trabalhou durante setenta anos, que “torcena” se devia ao facto de se terem fabricado nas antigas Ferrarias del Rey, criadas por D. João II em Barcarena, mesmo ao lado da Fábrica da Pólvora, bacamartes que teriam recebido essa nomenclatura.
    A grande verdade é que, por muito que se tivesse procurado esses bacamartes em museus de armaria e em registos da época, tal nunca se veio a descobrir, pelo que essa remota ideia, acabaria por se perder prevalecendo o facto de ter mais realidade as tercenas, por de facto se relacionar com o que de verdade existia naquele local.
  Acrescentando à ideia, de que era fácil a mudança de nomenclaturas de localidades naquele tempo, em 1930, uma petição de Lino Pedro da Silva, para ampliação e modificação da sua propriedade naquela localidade, o requerimento entrou na Câmara Municipal de Oeiras com a indicação de “Torcena” em 13 de Novembro de 1930, e quando foi deferida a autorização, veio já com o nome de Tercena, perdurando até aos dias de hoje.
    Mas voltando a Manuel Antunes que motivou estas mutações, Tercenas deveria na realidade ser o verdadeiro nome da terra, só que, atendendo a que era uma nomenclatura no plural, terá sido optado por se dar aquele nome, mas no singular, pois a grande verdade é que tercenas, de facto existiam algumas naquele local junto ao ribeiro e não apenas uma, por isso terá sido esta uma das principais razões daquela mudança de nome no início da década de trinta do século passado.
    Manuel Antunes viria a falecer e jamais se terá apercebido em vida das razões destas mudanças, assim como outros moradores daquela época e geração e só muito mais tarde quase cem anos após o seu falecimento, o seu bisneto se preocupou com estes pormenores e tentou saber as razões destas alterações toponímicas, mas também ele, embora todo o seu trabalho e preocupação, jamais conseguiu saber a verdade, por nada existir registado em documentos formais e oficiais destas mudanças, como acabaria por suceder com a mudança de Torcena nos anos trinta do século passado, pois muito simplesmente foi retirado o “o” e colocado o “e” e isto por Joaquim Cabril, um distinto médico de Barcarena assim ter proposto em Oeiras e a troca foi fácil e entendida prevalecendo até aos dias de hoje.
&&&


























Esta Recolha indica-nos que são oriundas dos Açores

“’AS DANÇAS ETNOGRÁFICAS’ QUE SE REALIZAVAM EM TERCENA,PROVAVELMENTE SÃO ORIUNDAS DOS AÇORES
   Foi daqui que provavelmente saíram as “danças etnográficas” que se representavam na Área Metropolitana de Lisboa desde o princípio do século passado a meados dos anos cinquenta do século passado
     Aprovada pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, na Horta, em 5 de Setembro de 2013 foi decidido propor ao Governo Regional dos Açores, depois de ter ouvido entidades representativas da cultura terceirense, que diligencie a classificação das tradicionais Danças e Bailinhos de Carnaval da Ilha Terceira como Património Cultural Imaterial de Portugal, o que consideramos uma grande justiça pelo valor, não só patrimonial, como também por uma tradição que se não for devidamente apoiada poderá perder-se em curto  espaço de tempo.
   Diz a determinação assinada pela  Presidente da Assembleia Legislativa, Ana Luísa Luís o seguinte despacho:
    Assim,  a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, nos termos regimentais aplicáveis e ao abrigo do n.º 3 do artigo 44.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, resolve recomendar ao Governo Regional que:
  “As tradicionais Danças e Bailinhos de Carnaval da ilha Terceira destacam-se pela sua longevidade, pela sua originalidade e pela sua representatividade.
 Remontam ao tempo dos povoadores e reflectem influência dos autos vicentinos do século XVI.
Constituem uma das formas mais peculiares de festejar o Carnaval em Portugal e não encontram paralelo no
nosso país.
   Representam a maior manifestação de teatro popular de língua portuguesa realizada em todo o mundo e mobilizam toda uma ilha.
Todos os anos, nos quatro dias de Entrudo, mais de meia centena de danças e bailinhos, com quase dois mil músicos e actores amadores, percorrem os salões das freguesias terceirenses, atraindo uma assistência global de dezenas de milhares de pessoas.
A sua concepção característica reparte-se por duas grandes modalidades específicas, em ambos os casos puxadas pelo apito de um mestre:
As “Danças de Espada” são geralmente dedicadas a assuntos mais dramáticos, porventura de carácter histórico;
“Os Bailinhos” envolvem uma vertente mais cómica, com crítica social a problemas actuais.
A sua estrutura tradicional subdivide-se em três componentes distintas, sob a orientação do mestre da dança:
A “saudação” cumprimenta o povo que os aguarda no local de passagem;
O “assunto” apresenta o argumento desenvolvido pelo enredo;
A “despedida” agradece o acolhimento do recinto e a
atenção da assistência.
As suas dimensões histórica, cultural, social e turística justificam o seu reconhecimento oficial como Património Cultural Imaterial de Portugal, sublinhando assim a sua importância actual e salvaguardando também o seu desenvolvimento
Futuro”
     Lembramos que foi talvez  baseado nestas tradições  muito remotas que a região saloia terá copiado da sua congénere açoriana, esta tradição, onde algumas das suas danças de Carnaval, chegassem até aos continentais, uma vez que  pelo menos as “Danças de Espada” têm muito em comum com o que se realizava especialmente a região saloia denominado “Danças etnográficas” que saiam para a rua pela Páscoa e Pascoela e que perduraram até meados dos anos cinquenta no continente mais propriamente  na região concelhia de  Oeiras., Sintra e Cascais.
     Os “bailinhos”,  mais semelhantes às velhas cegadas, tinham lugar único e simplesmente nos quatro dias de Carnaval.
   Já nos tínhamos  referido a este tema na devida altura e agora com este parecer aprovada pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, na Horta, leva-nos a apoiar e a felicitar a ilha Terceira pela insistência na realização destes típicos e tão tradicionais espectáculos pela sua grande força de vontade do seu povo, mantendo-os até aos dias de hoje, depois de sermos assediados com tudo e mais alguma coisa que nos colocam diariamente em casa através das televisões.
     A região saloia  acabou por ser vencida aquando  foi instalada em  Portugal no dia 7 de Março de 1957, a televisão portuguesa que,  obrigou o povo a   afirmar que as danças etnográficas, que tão bem apresentavam os jovens de Tercena, Leceia,  Linda a  Pastora, Barcarena, Manique, Tires e todas as outras localidades  limítrofes, estavam fora de moda apresentando espectáculos obsoletos, mas a grande verdade é que esse indigna classificação transportou até aos nossos dias músicas e cantares que ainda hoje são devidamente respeitados pelos grupos folclóricos e Tercena orgulha-se de apresentar através do seu agrupamento três dessas relíquias, que dão pelo nome de, “”O Zé das Castanhas”, “Milho Rei” e “Aleluia”.
     Parabéns Açores por nos ter finalmente  facultado uma cópia  dessas tão queridas tradições que dão hoje fama ao Rancho Folclórico  “As Macanitas” de Tercena; que por coincidência ou coisas do destino, já fez mais de trinta representações na Região  Autónoma dos  Açores  em sete das  suas nove ilhas.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

As tradições desta região

A ÁGUA-PÉ SALOIA QUE SE FABRICAVA EM TERCENA E ARREDORES
 
      A água-pé era uma das bebidas mais típicas e famosas da região saloia,  e ainda hoje perdura em toda a região, mas com uma procura bem mais diminuta.
   Em tempos recuados a água-pé  aparecia logo a seguir ao feriado de Todos os Santos, mas  por altura do S. Martinho era obrigatória em quase todas as casas dos trabalhadores e isto porque a sua popularidade era tão grande e o desejo de a ter e beber tão óbvio,  que  toda a gente arranjava  sempre tempo para plantar uns bacelos na sua horta e deles retirar as preciosas uvas para delas fabricarem  o líquido.
     Os que não tinham  hortas compravam uvas e faziam o precioso néctar, uvas que vinham das mais diversas regiões afamadas, como Cheleiros, Torres Vedras, Ribatejo ou região de Setúbal.
    Ao longo dos tempos houve sempre gente especializada na feitura desta bebida e diziam-se conhecedores a fundo dos  segredos de Baco, vindos dos seus ancestrais familiares, uns com alguma utilidade, mas outros sem qualquer interesse.
   Havia também os chamados «batoteiros» que fabricavam a bebida por processos pouco ortodoxos, e que acabavam por  não merecer a  aceitação dos  verdadeiros bebedores pois bem lhe notavam sabores esquisitos que nada tinham a ver com a água-pé propriamente dita que se fabricava na região saloia.
    Açúcar moscavado, aguardentes vínicas e  outros produtos  concebiam a bebida, que depois de engarrafada, se tornava bastante espirituosa,  mas não era aquela bebida  bem conhecida pelo paladar, de todos os saloios.
    Nesta arte de fazer agua-pé, que já vem dos primórdios da região, conhecemos  o Jorge da Maria Emília que no lugar do Bico preparava  uma excelente agua-pé, jeito herdado  anos mais tarde pelo Manjerico, que acabou por ser o último  homem a comercializar a bebida em Tercena.
   O Jorge da Maria Emília fazia a bebida, que era  por norma consumida pelos  caçadores que nesta altura  do ano invadiam as terras  de caça de Cabanas e sempre na volta, de regresso a suas casas por ali passavam para provar a bebida e comerem os seus petiscos.
   Essa arte, como já dissemos, foi mais tarde herdada pelo   Manjerico que chegou a fabricar mais de  3.000 litros e vendê-los nos seus barracões sitos no Pomar junto á sua casa.
   O António da Rosa também, vendeu muita água-pé fabricada por si próprio, e a bebida era consumida no Bico num barraco  junto ao ribeiro por onde o frio entrava e lhe dava força e espírito, vendida depois  na taberna que tinha em Tercena e mais tarde quando já estava bastante velhote, ainda a fazia nos barracões existentes no Mercado Provisório onde chegou a ter ali um talho.
    Na horta do Louro na Ferraria também se fabricou água-pé, mas essa era único e simplesmente para seu consumo e dos seus amigos que juntava depois das caçadas, na barraca das  alfaias  da horta onde aliás, a bebida, cozia e se bebia.
   O Barbosa também era especialista no fabrico de água-pé, mas esse, por vezes,  aplicava os seus  secundários conhecimentos e baptizava a bebida com produtos estranhos  para que ela pudesse ter melhor paladar e obviamente durar mais tempo dentro dos barris, já que não vendia a ninguém.
     Tinha a mania que só ele é que sabia preparar aquele líquido, e que só a sua água-pé é que era boa, as demais não prestavam para nada.   
    A bebida, certos anos com grande qualidade de facto, era feita no Canto  do João de Péles, por detrás da sua vivenda, a uva normalmente vinha de Cheleiros e a sua chegada era sempre rodeada de grandes secretismos, altas horas da noite, porque  quem fosse encontrado a transportar uva sem guias passadas pela  Junta Nacional do Vinho era  multado, a uva destruída e o vinho era apreendido e arremaçado para as valetas da rua e isso aconteceu com muita gente, que por vezes apenas fabricava a bebida  para seu consumo, só que os fiscais que andavam de noite e dia a farejar esses recantos, não perdoavam a ninguém.
     A água pé não tinha segredos na sua feitura, mas na realidade havia regas para a fazer e se elas fossem respeitadas  não se justificava a bebida sair má.
     A qualidade da uva, o cuidado de não lhe misturar lixos aquando era pisada no lagar; a quantidade de água a misturar com o vinho. o tempo que ficava na balça para lhe dar mais ou menos cor; a lavagem dos barris, por forma a não ficarem cheiros nem gostos esquisitos pois isso iria depois adulterar o líquido e dar toda a atenção ao tempo de fervura, pois os barris conforme iam fervendo deveriam ser bem atestados com bebida que se guardava para aquele fim, pois isso iria permitir não dar acidez ao líquido, entre muitos outros cuidados.
     Uma recomendação que todos faziam na sua adega, era não deixar entrar mulheres menstruadas na zona dos barris, pois segundo diziam os antigos isso podia estragar toda a bebida, o que não vimos qualquer razão, mas a grande verdade é que esse cuidado era religiosamente cumprido pelo mulherio que frequentava a casa de quem fazia a bebida.    
    Já o pai do Barbosa, que sempre vivera em Queluz de Baixo também era um grande especialista no fabrico de água-pé, só que este  fazia grandes quantidades, em tonéis de grande litragem, para vender e chegou a ter mesmo uma grande clientela nesta altura do ano.  
   O Lagarto também costumava fazer agua pé para satisfazer os  clientes da sua taberna e  junto ao casebre onde guardava a burra e a carroça,  tinha sempre um ou dois tonéis de trezentos litros e ali fazia a bebida para depois a vender.
     Era um grande risco que estes homens corriam, especialmente os comerciantes, em quem se concentrava mais atenções por parte da fiscalização, mas  ultimamente os fiscais apenas actuavam por denuncia.
     O Lagarto  uma vez, depois  de praticamente ter vendido toda a agua-pé, deixou ficar um resto no barril em cima da mãe, para de quando em quando beber e dar aos seus amigos mais íntimos.
   Tinha enchido uma grande quantidade de garrafas para vender mais tarde na sua loja e o restante era sempre, como ele dizia; «para as suas paródias com os amigos».
      O Filinto, o Virgílio do Olímpio e outros rapazes daquela época, enquanto houvesse água-pé no lugar não a largavam e então todas as noites procuravam o Lagarto para lhes vender umas canequinhas.
   O Lagarto, àquela hora da noite, já estava cansado do seu rude trabalho diário e  por vezes, o que lhe apetecia era dormir e então entregava a chave do barracão ao  Filinto para  beberem ali umas canecas e depois faziam contas.
   Eram pessoas conhecidas e amigas e demais o Filinto tratava da sua escrita e como tal confiava grandemente nele.
   Mas foram tantos os dias que aqueles rapazes ali foram ao barracão que o Lagarto acabou por desconfiar.
   Pois sabia que já pouca água-pé lhe restava no tonel, e provavelmente  só daria para vinte ou trinta canecas, e como é que aqueles rapazes todos os dias lhe pagavam dez e mais canecas que bebiam e isto durante mais de uma semana.
   Ao vê-los regressarem da barraca, perguntou-lhes:
     «Você conseguem beber a água-pé que está no fim do   tonel?... Aquilo  já só deve ter borras. E vocês bebem?..»
     - Claro que bebemos e está que é uma maravilha. Bebemos três canecas cada um e ainda lá ficou muita bebida.
    O Lagarto ficou alertado com a informação, pois sabia e bem o que lá tinha deixado e pelas suas contas,  há uma semana que aquele grupinho andava a beber três canecas cada um, o que,  pelas suas contas  dava uns bons litros de bebida o que não havia  de certeza no  tonel .
  No outro dia foi ao barracão e ao abrir a torneira do tonel, reparou que o mesmo já nada deitava.
      A vasilha só tinha borras, e por curiosidade espreitou para debaixo do canteiro para ver as garrafas que lá tinha colocado, devidamente cheias e enrolhadas para mais tarde as vender na sua loja, e outras destinadas ao Crisóstomo Gonçalves chefe da Secretaria da Fábrica da Pólvora .
     Qual não foi  o seu espanto ao reparar que metade da pilha já não estava lá, e foi então quando constatou que afinal a agua-pé que os seus amigos bebiam todas as noites era da engarrafada e não do  tonel.
   Quando eles à noite chegaram com o pretexto de irem ao barracão beber, o Lagarto, fingiu nada saber e deu-lhes a chave, só que passados cinco minutos estava à porta da barraca para observar ao vivo a manobra daqueles seus grandes amigos.
    Lá estavam eles a abrir uma garrafa, com um saca rolhas que o Filinto levava na algibeira.
    Quando entrou, eles ficaram pasmados e assustados, pois não esperavam ali o Lagarto àquelas horas e este deu-lhes um grito, bem típico seu e foi então que os espertos foram descobertos.
     Não é que eles lhe tivessem a roubar a bebida, pois todas as noites pagavam o que bebiam, o que aconteceu foi que,  mais tarde a água pé, a que  se destinava ao Crisóstomo estava quase toda bebida e o Lagarto tinha-se comprometido em arranjar-lhe cinquenta garrafas e depois ficou enrascado.
   Muitas histórias se passavam  no período da água-pé, só que todas elas não tinham grandes consequências porque existia uma grande amizade entre as pessoas, e depois em primeiro lugar havia que dar sequência à tradição saloia de se fabricar aquela bebida tão apreciada pelos lisboetas que se sentiam defraudados quando, por altura da Feira das Mercês ali a bebiam, diziam que era boa,  só que ao provarem a bebida umas semanas mais tarde nestes produtores particulares, constatavam que afinal, bebida boa era aquela que estes amantes fabricavam particularmente e não a que se vendia na Feira.
   A água-pé deixou de se fabricar em todas as casas e quintas da região, porque entretanto outros a vendiam em grande quantidade, como o Grupo Recreativo de Tercena, o Manjerico, o Pico do Arieiro, as tabernas locais e outros grandes produtores ocasionais, e a bebida perdurou até aos dias de hoje, sempre feita pelos mais saudosistas, contudo uma das grandes razões da mesma se deixar de fabricar em grandes quantidades nesta região, foi o facto da Junta Nacional do Vinho proibir por completo o seu fabrico, e neste empasse, entretanto as novas gerações também  já se tinham habituado a outras bebidas, como a cerveja, a coca-cola entre muitas outras, que deitaram completamente por terra esta grande tradição saloia.
      Hoje a água-pé já aparece raramente nestes lugares e agora até, toda a gente a poderia fabricar à vontade porque a Junta Nacional do Vinho deixou de pressionar como antes do 25 de Abril.
   A água-pé nesse tempo era expressamente proibida e até o seu nome não podia ser divulgado livremente.
    Hoje, até os fornecedores de vinhos a vendem, com esse nome mesmo,  só que a qualidade é totalmente diferente, porque é feita com os resíduos  da uva que primeiramente faz o vinho, o que aqui não se fazia.
     A procura era grande e toda a gente rabiscava os locais de fabrico e venda,  nomeadamente os lisboetas, que chegavam a vir de propósito da capital a Tercena, para levarem para suas casas um garrafão para festejarem o S. Martinho, como todos os anos acontecia com o Leitão e o Raúl «Morto», que trabalhavam na Fábrica da Pólvora que neste dia vinham a Tercena comprar a agua pé para à noite a beberem em suas casas com a família ou com os amigos.
     As tascas de Porto Salvo não tinham mãos a medir neste dia, casos dos irmãos Canejos, o «Cego» e outros, o Bicharada de Vila Fria, o Alberto de D. Maria entre muitos outros famosos produtores de agua pé saloia.
    Ainda e baseados nas histórias que se diziam e aliás se respeitavam solenemente, o dia 10 de Novembro, véspera de S. Martinho era considerado o dia dos «profissionais».
    Todos aqueles que ao longo do ano estavam acostumados a beber, mas o dia 11, ou seja o próprio dia de S. Martinho era para os «amadores», ou seja, todos os outros que, com dois ou três copinhos ficavam logo a cantar o fado ou a dormir.
    Diz ainda a tradição que foi desse mesmo dia em que todos bebiam e se «enfrascavam», que saíram grandes profissionais da bebida que, a partir de então, jamais bebiam água pé no dia do patrono, mas sim na véspera, pois a sua categoria  «bacológica», tinha mudado e isso teria de ser solenemente respeitado.