segunda-feira, 28 de março de 2011

Recordando o passado

AS GRANDES CHEIAS DE 25 DE NOVEMBRO DE 1967
Naquela dia, a chuva caiu intensamente, facto que não foi valorizado na medida em que, Novembro era, habitualmente, o mês da chuva, e como tal, ninguém esperava o que viria a suceder ao final daquele dia.
 Na realidade a intensidade manteve-se, enchendo por completo as ribeiras que atingiram rapidamente o seu limite máximo, transbordando mesmo de forma assustadora.
  A noite caiu rapidamente e as pessoas mal viam os caminhos, quanto mais o nível das águas, pois só se ouvia o barulho ensurdecedor das águas enlameadas em turbilhão rumo ao mar.
  Os alarmes começaram a surgir ao final da tarde, no lugar do Bico, pois o pequeno bloco habitacional, com pouco mais de trinta pessoas, começava a ficar verdadeiramente transformado, com as pessoas assustadas, pois as águas já chegavam às casas, com algumas mesmo a ficarem totalmente inundadas.
  A solidariedade das pessoas fez-se sentir de imediato e da povoação de Tercena, começou a chegar gente, para ajudar todos aqueles que se sentiam em perigo, acartando alguns bens para lugares seguros, pois as águas ameaçavam grandemente.
     No Bico passam dois ribeiros, o que vem de Almornos e desagua em Caxias e o que se inicia em Massamá, passando pela povoação de Tercena, sendo pois um afluente da ribeira de Barcarena, desaguando precisamente naquele lugar.
    Eram precisamente essas águas que invadiam as casas do lugar, uma vez que a fortaleza do ribeiro não permitia escoar facilmente essas águas, que vinham de Tercena, e as pessoas, ficaram preocupadas, pois já tinham entrado em algumas habitações.
  Foi nessa altura que se percebeu a grandiosidade da tragédia, mas sem se vislumbrar os seus verdadeiros resultados, pois por todo o lado as rádios anunciavam as cheias, com estragos em todos os pontos da periferia da capital.
    A noite estava cerrada e as pessoas ficaram sem luz eléctrica o que agravara ainda mais a caótica situação.
    De Tercena, vinha agora a triste notícias, que o ribeiro que passava junto ás Fontaínhas, proveniente das águas que escoavam das terras do Moinho Encarnado e Queluz de Baixo sul, estavam a por em perigo as habitações marginais, quase junto à Fábrica da Pólvora, onde viviam algumas famílias com casas alugadas à Maria Pinto.
   Morava nelas uma família carenciada, marcada pelo infortúnio da vida, cuja senhora, vivia com a filha mais nova, conhecida por “Lé-Lé”, que residira anteriormente no casal da Serra, conhecido pelo Casal de S. Miguel da Serra.
  Com a extinção daquele bairro, aquela família, composta por mãe e filha, a Sofia, arranjara uma pequena barraca junto ao muro, na propriedade da Maria Pinto a pouco mais de um metro do leito do riacho, que raramente enchia e não havia memória de alguma vez ter transbordado, só que naquele dia ameaçava tal. 
   Entretanto no lugar do Bico trabalhava-se arduamente, para salvar os parcos haveres daquelas famílias, ignorando-se que em outros pontos da freguesia se passava o mesmo drama e os bombeiros não tinham mãos a medir, pois as chuvadas caídas o dia inteiro estavam agora a produzir os seus nefastos efeitos.
  Em Barcarena, uma casa tinha desaparecido, salvando-se felizmente, os seus moradores, a ponte que comunicava com Leceia ameaçava ruir, pois as águas já a galgavam, e os pedregulhos, árvores, automóveis e toda a lixarada que se encontrava nas margens mal tratadas e cheias de enormes volumes abandonados, eram levadas e batiam com força na ponte, esperando-se mesmo que esta ruísse, por isso o trânsito fora prudentemente cortado.
    Noo bairro da Fábrica da Pólvora, a ponte de ferro tinha sido destroçada e levada pela fúria das águas, e a taberna da Perreirinha, mesmo à beira do ribeiro, tinha sido arrancada pela raiz e levada pela fúria das águas.
  Momentos antes, voluntários tinham salvo um trabalhador, o “Alegria”, que na sua barraca já tinha água pelo pescoço e já não conseguia sair pela porta.
 Teve de ser salvo pelo telhado, e puxado para cima, por três homens que se lembraram que ele deveria estar em perigo, pois sabiam que ele momentos antes tinha ido para casa.
    E nesta labuta, e consecutivas informações vindas daqui e de acolá, chegou a triste notícia de que, a filha da Maria Pinto, a Carolina, moradora nas Fontaínhas tinha desaparecido e engolida pela águas, causando um pânico elevado, com a convergência de parte da população de Tercena a tentar saber a verdade e a fazer algo que minimizasse a dor da família.
    Entretanto, neste amontoado de pessoas que rodeavam a estrada, junto da sua casa, uma sua vizinha, a filha da “Lé Lé”, precisamente a Sofia, que se retirara de sua casa, na companhia de sua mãe por as águas já terem galgado a margem e ameaçavam entrar na sua barraca, lembrou-se repentinamente que tinha deixado lá o seu rádio e precisava dele para ouvir as notícias de tão grande tragédia.
 Aconselhada a não regressar a sua casa, por se tornar perigoso devido a escuridão da noite, a rapariga movida pela sua juventude partiu alvoraçada mas a verdade é que jamais voltara, porque, segundo se verificou depois, a casa já não estava lá, e o ribeiro agora alargara o seu leito, até à muralha que dava para a estrada.
  A Sofia tinha sido igualmente engolida pelas águas em fúria, tal qual acontecera com a sua vizinha, Carolina.
    O pânico e o alarido ainda mais aumentara e a dor era agora comum a todos que ali se encontravam, pois a rapariga já estava a salvo e aquela sua macabra ideia, levara-a infelizmente à morte.
    No Bico, o drama continuava, mas não se registavam vítimas, contudo o Filinto Silva, que tinha ido em socorro do seu primo João Trajano, sabedor que a sua casa e haveres estavam em perigo, numa das manobras de transporte de haveres para um barracão junto à estrada que não corria perigo, desviara-se do normal trajecto, devido à falta de luz no local e ficara entalado num buraco onde as águas corriam com furor.
 Assustado, e em risco de ser levado pela forte corrente, começou a gritar e alguém por perto, ouvindo os seus aflitos gritos, pressentiu o ponto onde ele se encontrava, esticou-lhe o chapéu de chuva que portava, que por sorte se agarrou a ele, e puxado com todas as forças que aquele pobre ser possuía, o Filinto pode salvar-se de morte certa.
 A grande verdade é que o Filinto voltou a piso seguro e jamais conseguiu saber de quem tinha sido o milagroso golpe de astúcia daquele homem que o salvara de morrer afogado, porque o breu da noite não permitira descortiná-lo, nem este se inteirara de quem salvara, por estar aflito com a situação que ameaçava ainda mais perigo.
       A noite fora passada nesta grande labuta e pânico, porque as más notícias começavam a surgir, com algumas famílias do Bico a serem mudadas para casas particulares do lugar, onde acabaram por pernoitar, porque nas suas corriam bastante perigo.
    Quando o novo dia apareceu, as águas já estavam mais calmas e foi quando toda a gente se inteirou da grande tragédia ocorrida naquele fatídico dia 25 de Abril de 1967, que causara centenas de mortos por todos os lugares da área metropolitana de Lisboa, com a novidade de, em S. Marcos, ter sido engolido igualmente pelas águas um velhote bastante conhecido, o “Ti Ramiço”, pois ao passar a pequena ribeira de noite, vindo da colectividade, jamais pensou que a mesma levasse tanta água e acabou por ser surpreendido pela sua força e arrastado até à morte, até à Fábrica das Pólvora, numa distância de mais de dois quilómetros, onde o seu corpo fora encontrado.
     As duas raparigas, curiosamente, vizinhas há alguns anos, foram encontradas sem vida, no Murganhal, a escassos metros uma da outra, pois quis o destino que acabassem por parar da louca correria, empurradas pelo furor das águas depois de terem passado por uma manilha com pouco mais de sessenta centímetros de diâmetro, juntas, pois também na morte acabaram por ser vizinhas.
 Uma tragédia que deixou toda a região lisboeta, não só desolada, como em ruínas, porque os estragos foram elevadíssimos, com ruas, bairros inteiros destruídos, milhares de viaturas inutilizadas e muitas famílias enlutadas com a perdas dos seus ente queridos que, desta forma perderam a vida, devido à incúria governamental por deixar os rios e ribeiros sem serem limpos anos e anos seguidos e ter sido esta a grande causa de tão imensa tragédia, pois só na povoação das Quintas, perto do Carregado, morreram quase trezentas pessoas, restando, depois da tragédia, umas escassas dezenas, porque as demais acabaram por ser traídas pela fúria das águas, que, ao amontoarem-se os lixos na parte escoante do rio, o entulho fez de barragem enchendo a uma altura que ultrapassou as casas, dando morte a todos os seus moradores, já que a maioria se encontrava a dormir.
  Esta desgraça, correu o mundo inteiro, Portugal foi imensamente criticado por tão imperdoável descuido e a grande verdade é que a partir desse trágico ano, as ribeiras passaram a ser cuidadosamente limpas periodicamente e as cheias, embora continuassem a causar grandes enchentes, jamais motivaram uma tão grande mortandade, onde milhares de pessoas faleceram, com muitos dos corpos a não aparecerem, por terem ficado metidos na espessa lama, o que ainda mais atormentou as suas respectivas famílias, que pretendiam fazer-lhes um funeral digno.
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