segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Figuras castiças de Tercena

DESDE O “JAVARDO” AO “PIRUÇAS”,
 TERCENA CONVIVEU SEMPRE AO LONGO DOS TEMPOS, COM UMA FIGURA CASTIÇA

   Ao longo destas últimas gerações, Tercena encontrou sempre várias pessoas que se distinguiram, pela sua forma caricata, alguns bem aliada ao seu baixo estrato social, à sua pobreza, no entanto apenas quatro tiveram o privilégio de darem nas vistas, e mesmo nesta área foi difícil distingui-las, na medida em que nas últimas décadas do século passado a vida tinha-se tornado particularmente difícil e as pessoas quase passavam despercebidas, bem arreigadas às suas casas ou ao duro trabalho quotidiano.
      O comboio trazia gente para cá e para lá, a caminho dos seus serviços. A Fábrica da Pólvora vivia imbuída no seu constante quotidiano, sempre preocupada e receosa de qualquer acidente e o próprio lugar gerava poucos acontecimentos que se tornassem reparados, contudo apareceram na terra pessoas que, acabaram mesmo por dar nas vistas, mesmo diante da dureza do serviço que se impunha aos seus moradores.
       Logo no final da década de quarenta, início de cinquenta, quando esta terra vivia praticamente da agricultura, pois todos os espaços, agora ocupados com habitação, faziam parte de grandes e férteis searas de trigo e milho, uma das pessoas mais ricas que por Tercena aparecia era o “Moleque” de Porto Salvo, mais conhecido pelo Javardo, dono de todos os terrenos que existiam da linha de caminho de ferro para baixo, apenas com pequenas excepções que não passavam de áreas reduzidas, pois tudo o mais era da sua família.
      No entanto, homem rico e poderoso como ele era, aparecia publicamente da forma mais caricata e imunda, obrigando até muita gente, que o não conhecia, a afastar-se por nojo.
      De barrete negro na cabeça, encardido mais pela porcaria que continha que pela cor que lhe fora dada de origem, certamente terá sido colocado na cabeça no dia que o adquirira e nunca mais vira um pedaço de sabão, ou água, para ser limpo, a não ser a chuva que no Inverno o encharcava.
      Falava com a maior das naturalidades e sem saber uma letra, pois dormia muitas das vezes vestido e no entanto era proprietário de todos estes terrenos que envolviam o lugar, contratando caseiros para tomarem conta de alguns casais, como o do Crispim, do Manuel Roque, Conde da Azarujinha entre muitos outros.
       Homem que acabara por dar um terreno ao então recém criado Grupo Recreativo de Torcena, para construção da sua sede social, precisamente onde ainda hoje funciona e oferecendo mais tarde a continuação desse mesmo terreno até à Quinta do Marques de Café, mas por relaxo e falta de inteligência de alguns directores não o souberam aproveitar, porque como nada tinha ficado escrito no papel, deixaram o Javardo morrer e depois a família apenas se limitou a dizer que não tinha conhecimento dessa oferta do parente.
     Era um homem que ia de comboio para a feira da Malveira e de regresso vinha a pé com uma ou duas juntas de bois dormindo pelos campos, depois de passar por pedinte nessa mesma feira, dado o seu mísero aspecto mas quando o viam retirar de dentro do encardido barrete as necessárias notas para fazer o pagamento, toda a gente se admirava, pois antes, quando ele passava a saber do preço de determinada junta de bois, até lhe davam uma moeda para ele ir beber um copo, julgando-o apenas um pedinte.
     Quando viajava no comboio de Cacém para a Malveira, para se sentir sozinho no compartimento da carruagem onde seguia, fingia ter pulgas, coçando-se em todo o corpo ou então retirando ranho do nariz com os dedos, enojando toda a gente, só porque dentro do barrete levava grande quantidade de dinheiro, para poder fazer os seus negócios e não queria pessoas perto dele, para não ser roubado.
     Ninguém dizia que aquele homem era um dos mais ricos da época na área de Porto Salvo e Barcarena, onde mantinha as suas terras de cultivo.
     Brincava com as crianças, dava-lhes moedas para as mesmas dizerem palavrões e assim o conhecemos durante anos, bastante atrevido pois gostava de ter amantes e elas apareciam porque dinheiro também não lhe faltava, até que morreu, montado na sua burra quando atravessava a linha na passagem de nível de Fitares no Cacém.
       Não merecia uma morte tão estúpida e horrenda, porque fora sempre um bom homem, amigo do pessoal e de quem conhecia, e por essas razões, tornando-se famoso em Tercena e arredores, não pelo facto da sua riqueza, porque nesse tempo os terrenos não eram assim tão valorizados, mas sim pela imundice com que sempre se apresentava, apesar de se viver no seio de uma sociedade pouco preconceituada.
   Uns anos mais tarde apareceu na terra outra figura que se tornara típica, bem ao invés do Javardo, pois era extremamente pobre, já que mendigava pelas ruas da localidade.
   O “Clemente da Flauta” foi outra figura castiça que em Tercena apareceu.
   Tinha familiares na terra, três primos, o Raúl Narra que vivia na Calçada da Susana e os Guizos que tinham os seus casais na zona norte da localidade e eram agricultores remediados, com os quais não se dava e vivia numa barraca perto duma instituição de Saúde Psiquiátrica na Idanha, dirigida por irmãs da caridade.
   Era raro o dia que não aparecesse em Tercena, agarrado à sua imunda lata, onde guardava a comida que lhe davam, misturando tudo como que de um animal se tratasse. Roto, bem cheio de imundice, cara, mãos e pernas enegrecidas da sujidade acumulada, divertia-se ao som da sua flauta, como que fosse exímio na música, pois pouco mais sabia que aquela cantiga que depois cantava e que fazia parte do cancioneiro português “A Rosinha dos Favais”.
   Quando lhe davam uma esmola fraca, o Clemente fazia “cara torta”, refilava, o que levava a que essa pessoa, que não o conhecesse bem, jamais repartisse com ele.
    Metia-se com toda a gente e as crianças parodiavam com ele correndo-o à pedrada, porque ele lhe chamava nomes.
      O Clemente dizia abertamente às pessoas que tinha uma grande raiva aos seus parentes de Tercena, por saberem que ele vivia mal, e eles serem ricos.
FIM DA I PARTE

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